O Cão de olhos com brilho de diamantes.
E vinha ele em sua marcha trôpega adentrando o túnel.
Sobre suas quatro patas carregava sua palermice total, a língua pesada para fora da boca e o instinto estúpido que o empurrava para aquele destino fútil.
Os carros desviavam, passavam, buzinavam, ejaculados daquele buraco numa pressa vertiginosa. Bólidos incandecentes, sólidos solitários, numa corrida sem chegada.
Ele na contramão.
A cada novo farol os olhos brilhavam, hipnotizados. Era como fazer parte daquele céu de estrelas cadentes e finalmente estar presente aos olhos sempre distantes. Agora ele existia.
Mesmo que empecilho, pedra no caminho, pedra no sapato, sapato que acelera, acelerando quase por cima do Rex, Totó, Pluto, Bidu, Rintintim... Sem nome, sem causa.
Ele não tinha porque voltar. Sabia seu destino.
E ia.
A margem do túnel, a beira da morte. Quem não vive assim? Como o cão.
Passos curtos, zigue-zague, brincadeira, ganhando mais alguns segundos de vida.
E quem vive sem ambição, vive por frame.
Os carros guinchavam, berravam, zuniam.
Carros são nada mais que gente sem piedade.
Dá-se o luxo de sentar. Logo ali? A sua patetice espanta, comove e dá raiva. Abre a bocarra e solta um ganido. Preguiça de viver.
A fome o corrói todos os dias.
Se já não há bastante para os vira-latas bípedes, quem dirá para ele.
A ferida que já foi sarna, já foi pústula agora é parte dele mesmo.
Nem se julga miserável, porque havia de ter sido alguma outra coisa, para poder se comparar, mas nada foi além daquilo. Então é o que é. Nada mais, nada menos.
Volta a caminhar sem direção e sem saída.
As chagas, que se misturam aos tufos de pelo cinzento, brilham na escuridão e, ironicamente, parecem olhos de gatos que o salvam das rodas vorazes. E ele ganha mais um segundo. E outro. E outro.
O túnel o devora aos poucos. Regurgita fuligem. Arrota flashes de luzes. Automóveis como dentes buscam o que triturar. A língua marrom de óleo no chão reflete um brilho alógeno. Amarelo, fosco, cru como ele. Que mergulha trotando imbecil garganta adentro.
E os faróis refletem em seus olhos. Diamantes que são, a sua própria luz no fim do túnel.
# Foto: Miguel Barroso - www.fotosensivel.com -