O Que Não é Mais Gente


Sentiu o soco como se fosse uma benção.
Naquele exato momento começava a desexistir.
Desexistir. Desistindo foi...
Salpicou a calçada com um vermelho vivo e orgânico. A criançada riu divertida.
Fez com a lingua a conferencia dos dentes. Faltavam alguns. Tinha gasto uma grana no ortodontista para aquilo. Puta falta de considera...
A pancada pegou em cheio no raciocinio. Onde no corpo nem sabia mais. Foi tanto chute, soco, tapa, cuspe que nem se dava conta mais. Tanto fazia.
Nem dor sentia.
Estava ali a quantos dias? Não. Tinha uns dois minutos... Ou duas horas?
Olhou para o relógio e sentiu que seus olhos não focavam mais. Tudo embaçado de vermelho. Sabia que num deles nem mais olho havia. Só uma órbita negra e desforme.
Outro chute, mais outro, tudo começou a escurecer... Não, não. Cair no limbo agora não! Estava em meio a um raciocínio interessante. Adorava quando desenvolvia teses sobre ele mesmo. Ah, sim, seus olhos.
Verdes, grandes, lindos. Mudavam de cor por vezes e ganhavam um azul turqueza enebriante no inverno. Comeu muita gente por conta disso.
Agora eram um buraco e meio vazios de luz. Ali girava um eco de imagens.
Passou seus dedos tortos sobre a cara macilenta e não podia mais dizer o que era olho, nariz, boca... Não consguia nem soprar. Fez um bico e tentou um assobio.
Ouviu risos.
De repente ficou muito do puto dentro das calças. Que porra é essa? Do que debochavam? Deus socos e chutes na direção do escarnio. Ou pensou em dar e só chorou. Vontade não faltou. As lágrimas raivosas ardiam sobre as feridas.
Mais risos.
E chutes, socos, tapas e nada... Não sentia mais nada.
A ultima dor que identificara veio de suas partes. Sentiu que ali gastaram um tempo. Pisando, esmagando, dilacerando suas coisas... Que já haviam lhe trazido tanta felicidade e orgulho. Um homem sem sexo não é mais.
Sabia que entre os paus que lhe acertavam, tinha também um cano. E quando cruzava o ar para acertá-lo soltava um uivado. Ou era um gemido dele mesmo. Uivado, gemido, uivado, gemido. Era os dois. Ou três, quatro, muitos... Uma puta covardia.
Mas agora nem dor sentia. Doia mais ele não saber mais porque estava ali.
Uma sede enorme ressecou sua garganta dolorida. Sentiu o laço como uma gravata. O ar? Ar.
Provou o gosto daquilo que escorria abundante pela sua cara.
Sentiu-se morrer na ponta da lingua.
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Do Ponto de Vista Da Inveja


Laboratório. Noite. Pipetas, buretas, tubos de ensaio, almofarizes e azulejos. Muitos.

Um branco enorme e uma assepsia de uma clareza de semi-nova.

Ele, o rato de laboratório, passava o bigode por dentro de sua gaiola, em todos os cantos, com aquela inquietação mesquinha dos roedores.

Para cá e para lá.

Os olhos, apenas órbitas pretas, pareciam flutuar, soltos em meio aos pelos de uma brancura inocente. Como os que têm as almas boas e puras. Ou os cínicos.

O outro, o rato de esgoto, apareceu de uma fenda, um buraco, um lapso fedorento daquela alvura toda. Um deslize em toda ordem lógica do lugar.

Tudo tem sua brecha. Todo mundo.

Surgiu do seu jeito encardido, seboso, viscoso, fedorento. De uma cor de terra suja, carregando suas doenças e rejeição. De iguais os ancestrais e a mesma mesquinhez de movimentos.

Roedores parecem àquelas pessoas que comem solitárias em bancos de praças.

Ou entalados nos banquinhos dos fast-foods.

Engoles em pequenas dentadas. Escondendo nas mãos seus alimentos, num misto de vergonha e egoísmo. Depois relegam as suas migalhas aos pombos amaldiçoando o mundo em que animais estúpidos podem voar.

Dois ratos, dois mundos. Que se encaram.

O rato laboratório queria aquela liberdade.

O rato de esgoto queria aquela comida fácil.

O primeiro queria ser marrom, cheirar o medo nas pessoas se deliciar com o horror.
E atacar depois.

O segundo queria ser branquinho, fofo, cheiroso, para poder ser aceito, carinhado.
E atacar depois.

Um e seus vírus de laboratório. Inoculado, testado, experimentado. Mas um na cadeia de produção, cobaia, número apenas um reflexo do que somos.

Outro orgulhoso de todas as pestes ancestrais. Largado, aviltado, desprezado, perseguido. Vivendo em meio ao lixo, restos, excrementos. Ninhada de semelhanças com aqueles que dormem em camas de asilos.

E os olhos brilhavam negros enquanto desejavam. A boca enchendo de água só de pensar na vida do outro. A baba pinga viscosa.

Os olhares se cruzavam, debatiam, confrontavam. Podiam ficar ali secando um ao outro para sempre, por mil anos.

Como a vida, o primeiro precisava ser o segundo. O segundo necessitava ser o primeiro.

Uma liberdade de esgoto? Ou um cárcere farto?

A dúvida é vizinha da inveja na rua das escolhas.

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Traição


Foi a primeira a saber de tudo.
Por um segundo ficou sem fôlego.
Um terço nas mãos e uma oração dita aos céus.
No quarto coroas de flores, velas e as carpideiras.
O quinto dos infernos era onde ele devia estar.
O sexto sentido já tinha lhe avisado disso...
Do sétimo céu a queda nunca cessa.
Ou oito ou oitenta... A vida é assim. A morte mais simples.
A novena mastigada entre os dentes miúdos.
Era a última da mesa.


Os último serão sempre os primeiros.

A saber de tudo.

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