Com Deus Só a Vista.


Sol a pino, plena hora de almoço e todo mundo no bar.
Os biscates haviam praticamente sumido desde o final da duplicação das duas avenidas que ligavam aquele bairro esquecido em meio ao nada a outro bairro com um pouco mais de nome. Mas bem pouco importante também.
Mas o trabalho foi o suficiente para garantir mais alguns jogos de sinuca, falação alterada e mais uns goles das brancas.
Até o Merval fechou a birosca e fingiu função durante um par de dias para aumentar a adega. Ele sabia que a rapaziada viria seca quando o trabalho acabasse para se anestesiar depois de dias de labuta.
E foram-se os tratores, as britadeiras, os macacões e na direção do horizonte uma estrada. E todos, como o filho pródigo, voltaram ao boteco.
Um calor do cão derretia o queijo da vitrine e dava um aspecto suspeito aos petiscos a mostra.
As mesas tinham a disposição do acaso e foram um pouco afastadas para não atrapalhar o duelo de morte que se seguia, entre palavras de baixo calão, na mesinha de mata-mata. Aquelas que todos chamam de sinuca, mas tem muito mais charme. Jonas e Feliz jogavam valendo a próxima.
Numa cadeira mais ao fundo, na mesma posição de um lutador de boxe esperando para voltar ao ringue, golpeado por muitas brancas, dormia o Margarida. Um negão que era uma flor de pessoas, quando bêbado. Quando sóbrio era muito valente e era praticamente pena de morte chamá-lo pelo apelido.
Levava tempo para acostumar a vista ao escuro do lugar e as luzes que traspassavam as fendas das portas. Janelas e buracos na parede pareciam spots colocados ali com o propósito de iluminar o local e realçar o balé da poeira.
Uma gostosa morena oferecia com um ar lânguido, do alto de seu galhardete, uma saborosa cerveja. Mas ninguém se comovia. O coração batia com fidelidade pelas branquinhas.
Pé de Pavão entrou com seu andar altivo e todo besta. Foi direto ao balcão e mandou nos peitos do Merval.
- Ô Patrão, me dá uma branca!
Merval, com um tique ou mania besta para mostrar ser dono do local, fazia o que havia visto em filmes e passava um pano encardido no balcão. Ele falou entre os grossos bigodes.
- Nem fodendo Pavão! Vai ciscar em outro lugar que fiado só amanhã...
- Porra Merval, tu me disse isso ontem!
Lá no fundo, somando um Rabo de Galo, mais uma Caninha de Roça, mais uma Jatobá, duas de Chapéu de Palha... Uma Laranjinha pra hidratar, daí em diante três saborosas Jurubebas e a vitória do Fogão, faziam Jaci cantar vitória.
- Fooooooogoooooo... – Com a voz de pasta parecia que não ia chegar ao fim da chama.
- Pô Merval... Eu tive uma epifania!
- Caguei pra sua Estefânia, Pavão... Dá espaço no balcão para quem quer pagar... _ completou Merval dando de ombros. Pé de Pavão olhou em volta confuso. Só a mesma gentalha de sempre. Cliente? Que cliente?
- Eu te conto se você me der uma branca... A verdade de Deus!
Pé de Pavão tinha Doutorado. Estudou muito, falava línguas... E foi traído juntamente pelo paladar. As brancas já tinham tirado tudo dele, contudo queriam mais. E ele, feliz dava.
- To falando Merval. Daqui a pouco não se fala de outra coisa. Vai dar até no fantástico!
Pé de Pavão soltou a bomba e virou de costas esperando o estrago. Afinal, ele sabia que este era um dos únicos momentos que Merval largava o balcão. Exigia silêncio no bar e ligava a TV pra ver o Fantástico.
Olhos esbugalhados, boquiaberto a cada novidade da revista eletrônica. Era até covardia Pé de Pavão usar tal argumento.
- No Fantástico é? – Merval ainda estava desconfiado, mas havia sido fisgado. Pé de Pavão já podia sentir a branquinha rolando goela abaixo, quente no começo depois amaciando a garganta, enchendo o peito e dando aquela sensação de cabeça vazia... Praia deserta... Gozo. Se perdeu por um minuto no êxtase, mas logo voltou a carga.
- Tô falando, amigo...
– Hummm... Quem é esta Estefânia?
- É epifania meu querido Merval, epifania! – Tirou um pigarro longo e esfregou a garganta. O outro entendeu o sinal e já puxou a primeira que viu de cima das prateleiras. Puxou o copinho pequeno e serviu um pouco.
- Porra Patrão, nem a do santo?
Merval completou mais um pouquinho até ficar na borda. Pé de Pavão agarrou o copinho com tal maestria que nem um pingo escapou. Depois de uma única golada olhou para cima e entre os dentes confidenciou:
- Te devo esta meu santo!
- Fooooooooogoooooooooooo! – comemorava Jaci.
Merval esfregava as mãos no pano encardido e debruçava sobre o balcão curioso.
- Mas conta... Qual é a verdade de Deus?
- Tá preparado Merval?
- Porra Pavão, desembucha!
O clima foi tão grande que até Jonas e Feliz despertaram do mundo do mata-mata para a vida real e baixaram os tacos para prestar atenção. Pé de Pavão adorava platéia e só ficava meio puto de Jaci estar competindo à atenção com ele e Margarida dormindo. Deu uma cutucada na cadeira do negão que estava próximo e este acordou cheio de sorrisos.
- Já vou, Já vou...
- Cala a boca Margarida que o Pavão vai falar de um assunto sério...
- Deus é Fiado!
Silêncio no local.
Merval ficou com uma cara de “não acredito”. Jonas e Feliz se entreolhavam. Margarida sorriu mais ainda. Mas foi Jaci que surpreendeu a todos e ficou tiririca.
- Que papo é esse de Deus é viado cara!
E, como se pudesse, partiu para cima de Pé de Pavão que numa agilidade de pássaro voou sobre o balcão buscando abrigo atrás de Merval. Jonas correu para segurar Jaci enquanto Feliz sorria assistindo tudo. Margarida voltou a dormir apesar do barulho.
- Que atrevimento falar assim da santidade! Vou te cobrir de porrada seu herege!
Pé de Pavão, protegido, abriu logo as plumas reagindo ao ataque.
- Santidade é o Papa cara... Deus é Divindade! Santa ignorância!
Jonas completou.
- Ele falou Fiado, Jaci, Fiado...
Jaci desarmou e deu um sorriso amarelo. Depois tomou um fôlego imenso soltando o grito.
- Fooooooooooooooooooooooooogooooooooo! – Jonas desvia a cara se afastando do bafo e encarou Pé de Pavão.
- Agora que te livrei de tomar umas porradas, explica esta coisa de Deus é Fiado, que até eu fiquei curioso. Coloca outra pra ele aí Merval, que eu pago.
Pé de Valsa levantou o dedinho fazendo biquinho.
- Posso escolher? – Merval meio sem paciência fez que sim com a cabeça- De pássaro pra pássaro... Me dá uma Beija-flor!
Foi sevido sem miséria. Jonas fez um sinal com a mão e pediu um copo colocando meia dúzia de moedas sobre o balcão.
Os dois, cada um ao seu jeito, sorveu a cânha com gosto. Deu até sede em Merval que tomou uma também.
Após molhar as palavras Pé de Pavão já estava pronta para usá-las com maestria.
- A vida é a porra de um empréstimo... Que um dia Deus cobra.
Feliz se aproximou para ouvir também.
- Fooooooooooooooooooogoooooooooooooooo! – jaci agora dava pulinhos e socava o ar.
- E foi a Estefânia que te contou? – Perguntou Jonas esticando a língua tentando alcançar as gotas que escorriam pela sua barba.
- Esta Estefânia é uma mãe de santo? Vidente? – Merval adorava um tambor.
- Caralho, esquece a epifania, a Estefânia... Não percam o foco! Deus é tipo Casas Bahia... Faz a vida em várias vezes. Entendeu? Pra cada um, um prazo de pagamento.
- E tem SPC? Serasa? – Perguntou Feliz tentando parecer inteligente ou interessado.
- Tai... Acho que o coma... Ou uma doença terminal... É o Serasa de Deus... O SPC divino.
- Foooooooooooooooogoooooooooooooooo! – Nada que atrapalhe a história, só o Jaci.
Merval parecia querer debruçar sobre Pé de Pavão de tão curioso.
- Conta mais, conta mais...
O outro apontou para a garganta e tirou um pigarro.
- Puta sede...
Foi servido mais uma, duas vezes. Todos acompanharam. Afinal todos tinham que estar na mesma sintonia para acompanhar o raciocínio.
– Então Deus é dono das Casas Bahia...
- Tu fala besteira hein Feliz, Deus é dono de tudo!
- Não é por aí minha gente, o raciocínio está no Fiado... Que porra é esta de dar vida, futuro, perspectivas... – Filosofava Pé de Pavão.
- Perspectivas... – Feliz adorava uma palavra nova.
- E um dia tchuns! Pega de volta...
- Porra, e eu que achava que com Deus só a vista. Tipo olho por olho... – Completou Merval.
Ficaram os quatro olhando para o nada.
Só acordaram com o ruído da garrafa aberta por Merval. Mais uma que ele pegara sem olhar de cima das estantes empoeiradas.
Jonas fechou a cara e apontou a garrafa com a mão trêmula.
- Olha o rótulo...
Era uma autêntica Cachaça Divina, cristalina e que brilhava como um cristal amarelado por causa de um dos fachos de luz que entravam no local.
Praticamente um sinal divino. Pé de Pavão fez uma reverência e apontou para o céu.
- O senhor é que manda...
Como numa Santa Ceia improvisada ao redor da garrafa, jantaram a branquinha em pouco tempo.
Até o Jaci se aproximou para filar uns farelos pedindo dois dedinhos do copo dos outros.
E logo o Jaci que quando não estava torcendo pelo time da estrela solitária, se orgulhava de dizer: “O médico meu deu mais duas horas de vida e lá se vão uns 5 anos...” E ria com os dentes comidos pelo ácido úrico da cirrose hepática. Seu rosto lembrava uma figura do Botero sem o toque suave e rosado na pele. E que pele... Uma lixa de pelos grossos e esquecidos por lá.
Um dos pés já havia dançado por conta da diabetes. Mas Jaci não perdia a fome da branca.
De uma forma moderada, Merval às vezes fingia dar cachaça e batizava o que Jaci tomava. Tudo bem que ele cobrava como se fosse pinga mesmo, mas justificava:
- É para ele não desconfiar.- Merval, um grande coração.
Jaci lambeu o fundo do último copinho sobre o balcão e estufou o peito. O Botafogo seria saudado mais uma vez.
- Fooooooooooooooooooooooo...
A falta do complemento chamou a atenção de todos dando um toque sóbrio ao grupo. Todos olharam juntos para Jaci, até Margarida que abriu apenas um olho para entender o que acontecia.
Jaci estava amarelo. E foi ficando pálido, pálido, pálido... Colocou a mão sobre o peito como se fosse cantar um hino. A outra segurou as partes, como buscando virilidade para enfrentar o que estava por vir. Caiu no chão espalhando mesas, cadeiras.
– Olha a mobília Jaci! – Gritou o Merval.
Margarida saltou de onde estava e se debruçou rapidamente sobre Jaci fazendo, por puro reflexo, o que havia aprendido como socorrista nos tempos de escoteiro.
Os cinco cercaram o corpo olhando o trabalho de Margarida, que apertava o peito do companheiro caído e vez por outra fazia um boca-a-boca!
Jaci puxava o ar e batia com o cotoco de pé no chão. Mas nada vinha.
- Respira porra! Respira! – Vibrava Jonas como numa arquibancada.
- É Deus cobrando! É Deus cobrando! – Dizia Pé de Pavão, como se já houvesse avisado.
- É a porra da bebida... Parei! – Feliz não durou com esta verdade até o dia seguinte. Afinal, era preciso beber o morto.
Margarida viu que Jaci dizia algo, repetidas vezes. Aproximou o ouvido daquela boca balbuciante e ainda pode ouvi-lo dizer antes de parar por completo:
- Maldita Casas Bahia!


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