Bacon
Debaixo do papelão e do jornal surgiu o moleque.
A figura esquálida e encardida parecia mais uma sobra do que o próprio ser que a carregava. Bermuda larga, suja, camiseta sem mangas, uns dois números maiores com propaganda de político, suja, e tênis, um pé de cada, sujos. Todo o conjunto tinha um tom sobre tom marrom que combinava com a pele e a cor do centro da cidade.
Ele espreguiçou até não poder mais e em certo momento as costelas pareciam querer rasgar aquele pele macilenta que cobria o seu peito.
Tirou o pinto pra fora e urinou fartamente sem ligar que ali, na Avenida, logo as nove da matina, a maioria das senhoras e senhoritas passavam a caminho de seus trabalhos. Por um momento parou de ser paisagem e virou absurdo.
O que antes parecia uma figura de dar pena, daquelas que a gente passa ao largo e ao longe parecia um cano vazando, agora, por conta do atentado ao pudor, lembrava um ser humano.
E a urina jorrava farta, amarela e brilhante, descrevendo um arco no ar. Ele parecia sentir orgulho daquilo e brincava com a potência do jato procurando acertar cada vez mais longe.
Sorria mostrando os dentes beges e irregulares.
Idade? Quando cutucava os vidros, tentando vislumbrar os fantasmas que guiavam os carros, fazia cara de 10 ou 11 anos. Quando tocava terror, abusando dos outros garotinhos e garotinhas
mostrava uma virilidade de mais de 18 anos. Por isso, podemos ter uma média.
Nem ele sabia. Nem a ele importava.
Acabou de mijar e balançou o pênis como se fosse um troféu e um abuso a todos. Viu de longe o Guarda Municipal que se aproximava avisado por alguém. Deu de ombros.
Nem por milagre com aquela barriga toda o meganha poderia alcançá-lo. Mas o seu instinto sabia que ele não viria sozinho. São sempre covardes e não seguem regras na brincadeira. Sempre vem de dois contra um ou mais.
Por isso, era bom não ficar mais por ali.
Amanhã arrumava outro quarto, tem tantas opções. Afinal, a cidade há mais de tantos anos era sua casa. Toda. Sala, cozinha, quarto, playground, piscina... Tudo era dele. E cada canto ele conhecia como cada ponto manchado em sua pele.
Nem correu. Apenas apressou o passo e sumiu como camaleão na paisagem. Puxou a pele da barriga alongando o estômago. Sabia que aquilo significava fome.
Naquela hora sempre tinha uma senhorinha ou um boy que, tomando café, compadecia da cara que vestia aquela hora. Coitado.
Tinha uma casa de sucos ótima duas ruas mais abaixo e ele caminhou sem pressa. Ao contrário do que se imagina, adorava aquela sensação de “o que será que vou comer?” Ontem teve um resto de café com leite, um gole de refresco de acerola, meio misto quente e depois de uma futucada no lixo achou uma coxinha quase inteira.
As vezes em dias de feira tinha as frutas que escolhesse na hora da Xepa. Quase todas limpas, quase todas boas, quase todas saborosas.
O dia de verão prometia ser quente e equanto caminhava fez sua programação. Depois do café um bom mergulho no chafariz perto da igreja grande. Ali também poderia fazer suas necessidades e partir para planejar o almoço.
Queria experimentar o novo hambúrguer que via nas propagandas dos ônibus. Sabia qual era a lanchonete pelas cores e pela marca. Chegando lá era só apontar:
- Quero aquele da foto e uma Coca grande.
Esta parada de juntar letras definitivamente não era com ele nem pra ele. Não entrava na sua cabeça.
Enquanto cutucava os clientes da lanchonete, com aquele discurso ensaiado, pensava em onde encontraria o hambúrguer da vez. Hambúrguer era uma forma carinhosa de tratar suas presas, seus ganhos.
- Me paga um café, por favor? – Era um mantra repetido a cada nova cutucada nos clientes. Muitos olhavam e balançavam a cabeça negativamente. Outros agarravam a bolsa e negavam também. Outros olhavam e nada viam, só o marrom do centro.
Mas, água mole em pedra...
- O que você quer? – Aquilo o despertou do plano perfeito. Porta da grande loja. Por volta de meio-dia ficava lotado e muitos garotos ficavam por ali pedindo. Ele viu quase como real o hambúrguer saindo com uma bolsa grande, cheia, com várias coisas para ele.
Era tanta a experiência que ele podia dizer claramente o que havia na bolsa só pela cara do sanduba. Sabia só de olhar quem tinha um bom celular, não aquelas merdas pré-pagas, as que teriam um bom batom pra trocar por um boquete, as que teriam fotos pra ele imaginar sua família. Era crânio nisso.
O bom samaritano teve que repetir pra ele cair em si.
- O que você quer moleque?
Ele respondeu meio puto.
- Um joelho e suco de laranja.
- Ô Oliveira, da um joelho aqui e um refresco pro garoto.
- Não quero refresco não, quero suco!
- Tu é folgado hein moleque...
- Este refresco é uma merda.
- Então come só o joelho, e não fode! – Pra ele tanto fazia. Nem estava com sede. Tinha fome e o joelho o seguraria até o hambúrguer. O atendente escolheu um da vitrine e ele apontou o vidro.
- Este não, o outro! – Foi como se ele não existisse. E o Oliveira fez que não ouviu e esticou o salgado na direção dele. “Nessas horas eu queria ter um berro! Não, uma granada seria melhor... Levava todo mundo comigo sorrindo...” E abocanhou com raiva seu café da manhã.
Pegou carona no vai e vem do centro e as pessoas sumiram pra ele e vice-versa. E para sua surpresa não precisou caminhar muito. Dali de onde estava avistou um suculento hambúrguer duplo. Ele já tinha provado um daqueles antes. Era um verdadeiro xis-tudo.
Sacolas nas mãos, ar distraído e uma bolsa de couro linda, gorda, farta dando mole.
Roliça daquele jeito, apenas um esbarrão e ia ao chão. Enquanto o povo entendia o que estava acontecendo, ele puxava a bolsa, e saia livre ganhando a avenida principal.
Naquela hora era perfeito, pois a maioria dos de farda azul ou estavam no estresse do trânsito ou fazendo sua boquinha de café da manhã 0800, porque afinal ninguém é de ferro. Sabia que o principal era criar tumulto, pânico, terror. As pessoas paralisam e este é o tempo, para ele abrir pra a avenida principal tornando-se mais uma vez invisível.
A invisibilidade é um dom dos que são largados como ele. Não, na cabeça dele nem passa pena, ou menos valia. Pois quando quer e precisa ele se faz notar.
O Xis-tudo está prestes a perceber.
Ele caminha despreocupado e parece que faz compra com a senhora. Um toque de celular, não poderia ser melhor. Ele vê quando seu almoço pára, solta as bolas no chão e procura o celular na principal. O aparelho é bacana.
Aquele seria um momento ideal, afinal a distração é total. Mas não, o aparelho é perfeito. Daquele que tem tecladinho e um monte de “praqueisso”.
Podia esperar e o papo parecia que ia levar tempo.
Ficou ali de cócoras, observando o sol e o movimento. Sem nunca tirar o olho da presa. Seu Xis-tudo falava a vontade e parecia não ter segredos para o mundo.
Ouviu em detalhes do tratamento da mãe, já idosa, tadinha, sim, sim, oitenta anos... As fezes já sem consistência, a doença de nome estranho, a mudança constante de enfermeiras – “Ninguém tem paciência com ela...” – a promessa da visita, beijos, ligo sim, tchau.
Ele esticou o pescoço ainda agachado como quem queria vislumbrar o mundo de delícias que viriam de dentro daquele troféu.
O exato momento ficava entre o colocar do celular dentro da bolsa e o soltar antes dela voltar ao ombro. Ali estava o ponto frágil.
Preparou o bote e sentiu a boca se encher de água na expectativa do banquete.
Com certeza seriam dois ou três da novidade da lanchonete de marca.
A madame apenas deixou o aparelho escorregar para dentro da bolsa e ele partiu a caça.
Seu corpo se movia com graça e leveza. Seus músculos apareciam sobre a pele num desenho
lindo. Num movimento gracioso fez a senhorinha rodopiar no ar, junto com ele num balé mágico e desabar no chão quase que imediatamente. Em segundos a bolsa já estava em suas mãos e a rua se abria a sua frente com um mar de possibilidades. Nada pessoal, só a vida na savana.
Pediria mais molho, queijo extra e bacon. Muito bacon. Sua boca salivava e sem sentir sua baba voou no vento.
A bala estava apenas a milímetros de sua cabeça.
O bacon crocante foi seu último pensamento antes de virar um pequeno ponto vermelho naquele marrom todo.
24 comentários:
legal seu blog
14 de fevereiro de 2009 às 17:25Ola Marton.
14 de fevereiro de 2009 às 17:31Primeiramente, Obrigado pela visita!
Segundo eu li o seu conto do menino pobre, quase que inteiro...rs vou ser sincero.
É muito pesado tem partes que parecem um soco no estomago. há outras meio "comicas" uma especie de descontração apos a dura.
Gostei principalmente da ironia do começo do texto, a camisa de politico, é muito paradoxal isso.
E a parte que o menino pede o tal do joelho.
:)
adorei... Sabe, eu adorei mesmo. O desfecho pra mim era inesperado, achei que aconteceria alguma coisa, menos uma bala naquele momento, mas foi ótimo! Você escreve muito bem, sem deixar o leitor cansado com descrições, sem palavras rebuscadas que deixam o leitor desmotivado, e com um enredo que prende. Muito bom mesmo!
14 de fevereiro de 2009 às 18:15Forte é o teu perfil. Chique!
14 de fevereiro de 2009 às 21:54Ótimo texto, apesar de meio longo predeu minha atenção do início ao fim e tomou um romo que eu não esperava, achei que o menino ia se apenas mais um pedinte,muito bom...
15 de fevereiro de 2009 às 00:06Um abraço!
http://daniel.a.s.zip.net
Excelente texto. Realmente isso é uma realidade do mundo, em alguns paises pouco em outros demais.Doe saber disso? Sim, mais o que podemos fazer é ajudar com o que podemos. Se podemos, devemos ajudar e fazer a diferença. Se cada um ajudar com o que pode, ajude. Mais o mundo não pensa assim. Infelizmente !
15 de fevereiro de 2009 às 12:33Em meio a tragicomicidade do seu post eu faço questão de comentar que eu não gosto de alimentar a miséria alheia.
15 de fevereiro de 2009 às 14:28Lugar de marronzinho, pretinho, branquinho é na escola e só se pararmos de alimentá-los na ruas eles sairão delas!
legal a storia...parece ate a vida real....abraços;;
15 de fevereiro de 2009 às 14:55Parabéns pelo Blog.
15 de fevereiro de 2009 às 15:35Muito legal!
nossa .momento sem palavras para depois elaborar algo para se dizer...
15 de fevereiro de 2009 às 21:22me surpreendeu e ao mesmo tempo não.O texto estava leve,sensação de aventura e um leve conformismo,uma hora achava-se que ele ía simplesmente pegar o hamburguer e pronto..mas seria um final meio previsível.
Mas a bala e e o bacon ficou algo tão sinestésico..era sensação da fome,com a sensação de carne,com a sensação de morte..era esse meio minuto de silêncio que fiquei agora...
Obrigada por suas palavras no meu blog,dica vindo de você pra mim é um grande prazer!
beijo grande.
desfecho loko manoodi
15 de fevereiro de 2009 às 23:03Sim, claro, a discussão é muito mais ampla. Mas, sinceramente, creio que este seja o ponto de partida. Vc não?
16 de fevereiro de 2009 às 01:57Abraço e boa noite!
Excelente texto, parabéns.
16 de fevereiro de 2009 às 16:41E no comentário que fiz no outro post, esqueci de me agradecer pela visita. Muito obrigada e volte sempre. Você é um jornalista nato, colega :)
beijo e parabéns mais uma vez.
Que fim trágico.
17 de fevereiro de 2009 às 12:30Um vermelho naquele marrom todo!
Eu fiquei imaginando tudo que você falou.
Fui lendo e parecia mesmo que o moleque tava mijando já uns 3 ou 4 minutos.
Seu texto mexe com a imaginação!
Parabéns!
Sublime!
18 de fevereiro de 2009 às 10:07Vídeo nisso, cara.
Com narração grave no BG, tipo filme noir e as cenas todas em sépia e marrom. No final, vermelho.
Quase chorei, mas o tempo passou e quase não tenho mais lágrimas em meio a tanto marrom.
Deus te abençoe, brother.
Marton.
19 de fevereiro de 2009 às 13:57Desde a aridez malsã de "Vidas Secas" eu não me emocionava assim lendo algo de conotação social.
Percebe-se a alma pulsante envolta pela falta de caracterização de cada personagem — me peguei imaginando a história por trás da ligação da senhora da bolsa, o tipo de educação moral e cívica a que foram submetidas as pessoas que mostram-se indiferentes e até temerosas com os pedidos famintos do protagonista —, o que torna sua história crível, tocante e única.
E, se antes o comparei a Verissimo, agora preciso reformular meu conceito: você consegue ir além dos textos inteligentemente humorísticos, tornando-se um escritor de versatilidade comprovada.
Parabéns.
Gostei muito da forma elegante que você trata o garoto de rua e a distância das pessoas em relação ao seu sofrimento.Valeu gosto do que você escreve e até usei o texto antigo do cara com uma pilha de papéis que voam e as coisas acontecem.Valeu!
19 de fevereiro de 2009 às 17:00Parabéns pela critica social.
20 de fevereiro de 2009 às 23:55Eu tinha certeza que ele iria morrer, mas pensava que ele fosse atropelado, enquanto estivesse correndo pela avenida principal.
Esse muleque, pelo menos teve uma história, agora quantos desses que morrem, sem ninguém saber quem foram?
Abraços!!!
texto grande,mas mto bacana..
21 de fevereiro de 2009 às 22:24http://www.sitedetirinhas.blogspot.com/
Amei! Adorei! Eu entendi que o homem morreu, é isso? Perfeito.
25 de fevereiro de 2009 às 16:57Te convido a dar uma passadinha lá no Babel quando vc puder, tá bom?
Bjs!
kra, vc escreve mto bem...
8 de março de 2009 às 10:26foda/teu melhor texto para internet / show de bola. acertou o tom. sucesso.
8 de março de 2009 às 18:37Putz, eu tô com uma fome do caramba aqui, e acabei de ver a foto desse post, me deu uma vontade.
14 de março de 2009 às 19:38Abraço.
http://saulolopes.blogspot.com/
Se poder dê uma passadinha lá ;)
Putz que foda, axo que eh muito mais facil sentir esse personagem sendo um humano, em um texto, do q em nossa realidade, todo mundo morre de medo desses pivetes de rua, mas nao para pra colocar a mao na consciencia, e perceber quais sao as razoes dos motivos de seus atos.Cara a cada texto que leio gosto mais do seu blog.
28 de março de 2009 às 13:31Postar um comentário