quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Bacon


Debaixo do papelão e do jornal surgiu o moleque.

A figura esquálida e encardida parecia mais à sobra do que o próprio ser que a carregava. Bermuda larga, suja, camiseta sem mangas, uns dois números maiores com propaganda de político, suja, e tênis, um pé de cada, sujos. Todo o conjunto tinha um tom sobre tom marrom que combinava com a pele e a cor do centro da cidade.

Ele espreguiçou até não poder mais e em certo momento as costelas pareciam querer rasgar aquele pele macilenta que cobria o seu peito.

Tirou o pinto pra fora e urinou fartamente sem ligar que ali, na Avenida, logo as nove da matina, a maioria das senhoras e senhoritas passavam a caminho de seus trabalhos. Por um momento parou de ser paisagem e virou absurdo.

O que antes parecia uma figura de dar pena, daquelas que a gente passa ao largo e ao longe parecia um cano vazando, agora, por conta do atentado ao pudor, lembrava um ser humano.

E a urina jorrava farta, amarela e brilhante, descrevendo um arco no ar. Ele parecia sentir orgulho daquilo e brincava com a potência do jato procurando acertar cada vez mais longe.

Sorria mostrando os dentes beges e irregulares. Alguns eram cacos desenhando um sorriso devastado.

Idade? Quando cutucava os vidros, tentando vislumbrar de fora os fantasmas que guiavam os carros, fazia cara de 10 ou 11 anos.

As vezes a inocência nos olhos batia os 9 anos. Quando tocava terror, abusando dos outros garotinhos e garotinhas, mostrava uma virilidade de mais de 18 anos. Por isso, dava pra fazer uma média.

Nem ele sabia. Nem a ele importava.

Acabou de mijar e balançou o pênis como se fosse um troféu e um abuso a todos. Viu de longe o Guarda Municipal que se aproximava avisado por alguém. Deu de ombros.

Nem por milagre com aquela barriga toda o meganha poderia alcançá-lo. Mas o seu instinto sabia que ele não viria sozinho. São sempre covardes e não seguem regras na brincadeira. Sempre vem em dois contra um ou mais.

Por isso, era bom não ficar mais por ali.

Amanhã arrumava outro quarto, tem tantas opções. Afinal, a cidade há mais de tantos anos era sua casa. Toda. Sala, cozinha, quarto, playground, piscina... Tudo era dele. E cada canto ele conhecia como cada ponto manchado em sua pele.

Nem correu. Apenas apressou o passo e sumiu como camaleão na paisagem. Puxou a pele da barriga alongando o estômago. Sabia que aquilo significava fome.

A cola de sapateiro já tinha feito com que pulasse meia-dúzia de refeições. Mas agora a coisa estava crítica.

E naquela hora sempre tinha uma senhorinha ou um boy que, tomando café, compadecia da cara que usava àquela hora. Coitado.

Tinha uma casa de sucos ótima duas ruas mais abaixo e ele caminhou sem pressa. Ao contrário do que se imagina, adorava aquela sensação de “o que será que vou comer?” Da última vez teve um resto de café com leite, um gole de refresco de acerola, meio misto quente e depois de uma futucada no lixo achou uma coxinha quase inteira.

As vezes em dias de feira tinha sempre frutas que escolhesse caídas pela rua. Quase todas limpas, quase todas boas, quase todas saborosas.

O dia de verão prometia ser quente e enquanto caminhava fez a sua programação mentalmente. Depois do café um bom mergulho no chafariz perto da igreja grande. Ali também poderia fazer suas necessidades e partir para planejar o almoço.

Queria experimentar o novo hambúrguer que via nas propagandas dos ônibus e uma vez viu no painel de TVs na loja. Todo mundo que comia o novo sanduíche sorria e ficava mais feliz. Aquilo devia ser melhor que a cola. Riu sozinho.
Sabia qual era a lanchonete pelas cores e pela marca. Chegando lá era só apontar:

- Quero aquele da foto e uma Coca grande.

Esta parada de juntar letras definitivamente não era com ele nem pra ele. Não entrava na sua cabeça.

Enquanto cutucava os clientes da lanchonete, com aquele discurso ensaiado, pensava em onde encontraria o hambúrguer da vez. Hambúrguer era uma forma carinhosa de tratar suas presas, seus ganhos.

- Me paga um café, por favor? – Era um mantra repetido a cada novo puxão nos clientes. Muitos olhavam e balançavam a cabeça negativamente. Outros agarravam a bolsa e negavam também. Outros olhavam e nada viam, só o marrom do centro. Ele mesmo nem ouvia suas palavras absorto em seus pensamentos.

Mas, água mole em pedra...

- O que você quer? – Aquilo o despertou do plano perfeito. Porta da grande loja. Por volta de meio-dia ficava lotado e muitos garotos ficavam por ali pedindo. Ele viu quase como real o hambúrguer saindo com uma bolsa grande, cheia, com várias coisas para ele.

Era tanta a experiência que ele podia dizer claramente o que havia na bolsa só pela cara do sanduba. Sabia só de olhar quem tinha um bom celular, não aquelas merdas pré-pagas, as que teriam um bom batom pra trocar por um boquete, as que teriam fotos pra ele imaginar sua família. Era crânio nisso.

O bom samaritano teve que repetir pra ele cair em si.

- O que você quer moleque?

Ele respondeu meio puto.

- Um joelho e suco de laranja.

- Ô Juarez, da um joelho aqui e um refresco pro garoto.

- Não quero refresco não, quero suco!

- Tu é folgado hein moleque...

- Este refresco é uma merda.

- Então come só o joelho e não fode! – Pra ele tanto fazia. Nem estava com sede. Tinha fome e o joelho o seguraria até o hambúrguer. O atendente escolheu um da vitrine e ele apontou o vidro.

- Este não, o outro! – Foi como se ele não existisse. E o Juarez fez que não ouviu e esticou o salgado na direção dele. “Nessas horas eu queria ter um berro! Não, uma granada seria melhor... Levava todo mundo comigo sorrindo...” E abocanhou com raiva seu café da manhã.

Deu as costas para a lanchonete e observou a rua.

- De nada, hein? – Falou o homem já arrependido de seu gesto nobre.

Ele não ouviu. Ou não quis ouvir. Ou se ouviu, não ligou. O homem já era passado.

Pegou carona no vai e vem do centro e as pessoas da lanchonete sumiram pra ele e vice-versa. E para sua surpresa não precisou caminhar muito. Dali de onde estava avistou um suculento hambúrguer duplo. Ele já tinha provado um daqueles antes. Era um verdadeiro xis-tudo.

Sacolas nas mãos, ar distraído e uma bolsa de couro linda, gorda, farta, dando mole.

Roliça daquele jeito, apenas um esbarrão e ia ao chão. Enquanto o povo entendia o que estava acontecendo, ele puxava a bolsa, e saia livre, dobrando a esquina e ganhando a avenida principal.

Aquela hora era perfeito, pois a maioria dos de farda azul ou estavam no estresse do trânsito ou fazendo sua boquinha de café da manhã 0800, porque afinal ninguém é de ferro. Sabia que o principal era criar tumulto, pânico, terror. As pessoas paralisam e este é o tempo, para ele mergulhar na cidade tornando-se mais uma vez invisível.

A invisibilidade é um dom dos que são largados como ele. Não, na cabeça dele nem passa pena, ou menos valia. Pois quando quer e precisa, ele se faz notar.

E a Sra. Xis-tudo está prestes a perceber.

Ele caminha despreocupado e parece que faz compra com a dona. Um toque de celular. Hummm, não poderia ser melhor. Ele vê quando seu almoço pára, solta as bolsas no chão e procura o celular na principal. O aparelho é bacana.

Aquele seria um momento ideal, afinal a distração é total. Mas não, o aparelho é perfeito. Daquele que tem tecladinho e um monte de “praqueisso”.

Podia esperar e o papo parecia que ia levar tempo.

Jogou o joelho ainda pela metade fora e ficou ali de cócoras, observando o sol e o movimento. Sem nunca tirar o olho da presa. Seu Xis-tudo falava a vontade e parecia não ter segredos para o mundo.

Ouviu em detalhes do tratamento da mãe, já idosa, tadinha, sim, sim, oitenta anos... As fezes já sem consistência, a doença de nome estranho, a mudança constante de enfermeiras – “Ninguém tem paciência com ela...” – a promessa da visita, beijos, ligo sim, tchau.

Ele esticou o pescoço felinamente e mesmo agachado parecia vislumbrar o mundo de delícias que viriam de dentro daquele troféu.

O exato momento ficava entre o colocar do celular dentro da bolsa e o soltar antes dela voltar ao ombro. Ali estava o ponto frágil.

Era crânio nisso.

Preparou o bote e sentiu a boca se encher de água na expectativa do banquete.

Não seria apenas um. Com certeza seriam dois ou três da novidade da lanchonete de marca.

A madame apenas deixou o aparelho escorregar para dentro da bolsa e ele partiu a caça.

Seu corpo se movia com graça e leveza. Seus músculos apareciam sobre a pele num desenho lindo.

Já imaginava os arrotos do gás da Coca-cola. A sensação da barriga cheia, morna, dura.

Num movimento gracioso fez a senhorinha rodopiar no ar, junto com ele num balé mágico e desabar no chão quase que imediatamente. Em segundos a bolsa já estava em suas mãos e a rua se abria a sua frente com um mar de possibilidades. Nada pessoal, só a vida na savana.

Pediria mais molho, queijo extra e bacon. Muito bacon. Sua boca salivava e sem sentir sua baba voou no vento.

A bala estava apenas a milímetros de sua cabeça.

O bacon crocante foi seu último pensamento antes de virar um pequeno ponto vermelho naquele marrom todo.


#Vale a pena ver de novo. Na segunda, post novo.

3 comentários:

Kelly Christi disse...

vc e suas tragi-comedias rsss

bjitos

http://www.pequenosdeleites.blogspot.com

27 de agosto de 2009 às 01:28
JIZ ♥ disse...

Oi!
ótimo post, sempre que puder estarei passando por aqui.
Se puder passa no meu!
beijo.

29 de agosto de 2009 às 19:58
Myself disse...

Ao menos morreu se sentindo vitorioso!

Amei o texto,como sempre, quando começo a ler aqui,é impossível parar,prende que é uma coisa!

Beijos!!

8 de setembro de 2009 às 10:36

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