Do Frio e Branco Azulejo
Sentiu seu corpo rodopiar. Bateu uma, duas, talvez três vezes contra a parede molhada. Sua perna assumiu uma posição incompatível com o corpo. Ouviu o barulho claro de osso quebrando. Nunca havia quebrado nada na vida, mas sabia que não podia ser outro ruído. Caiu.
- Ai! – Um grito curto, abafado, pra ninguém. Se ela estivesse distraída, como a pouco pelo sabonete, nem ela mesma teria escutado.
Um filete de sangue corria para o ralo levado pela água morna que vinha do chuveiro.
Ela gritou. Muito. Várias vezes. Nada.
O registro do chuveiro começava a sumir em meio ao vapor da água. Ela esticou a mão como se tentasse alcançar dali debaixo. Nada.
Via apenas suas mãos em meio a nuvem morna. Reparou nas pintas, nas rugas, que surgiam aos montes, misturando-se com as rugas que agora por causa da água e enrugavam também a palma da mão.
Ficou parada por um momento reparando o próprio corpo, os seios flácidos, a barriga branca, os pelos pubianos fartos e agora brancos, quase que totalmente.
A dor já se afastava dela e ela só se sentia dormente. Cada vez mais.
Ela tentou se virar para abrir a porta de alumínio, mas seu próprio corpo inerte impedia.
Por um instante se lembrou da sua pequena banheirinha, da mãe, dos objetos inalcançáveis e da segurança daqueles banhos à tarde.
Era como se de um momento para o outro sua mãe fosse surgir em meio ao vapor, para enrolá-la na toalha cheirando a talco e alfazema.
Até a velha canção da hora do banho veio à tona.
- Os olhos da minha filhinha, são pretos que nem carvão... – ela se pegou cantando. Sua voz era tão parecida com de sua mãe, e agora sua filha tinha o mesmo tom.
Olhou para cima encarando as gotas que caiam em sua direção e pensou em chuva. Sempre adorou chuva. Com o passar do tempo, e das neuras do marido, passou a temê-la. Nunca soube ao certo porquê. Apareciam algumas nuvens no horizonte e eles se apressavam a fechar portas, janelas e aguardar como sentinelas.
Lembrou da chuva que a pegou desprevenida no Passeio, em frente à Mesbla, do beijo roubado subindo a Rua das Marrecas, do hotel com cheiro de água sanitária, da gravidez inesperada. Talvez tudo tenha sido tão rápido porque ele também usava Alfazema.
O marido nunca desconfiou de nada, mas nunca tratou a filha mais nova como tratava os meninos mais velhos. Ela se fez acreditar que era por ser mulher e o marido sempre quis ter filhos, machos, varões.
Estes se perderam no mundo mas a filha ficou a seu lado.
Insistia em que ela não estava mais na idade de morar sozinha. Filhos não sabem das coisas.
Ela podia sentir ali, em meio ao vapor o cheiro, o gosto e a vontade do beijo.
Algo invadiu suas narinas, suor e Alfazema tomavam o Box. O odor veio forte, denso, quente.
Sentiu no corpo algo que não sentia há anos e ficou mais confortável. A dor ia longe.
Antes de fechar seus olhos e se preparar para sumir na escuridão, ainda conseguiu ouvir ao longe.
- Mãe?
Não sabia se era sua filha, sua mãe ou se ela mesmo se confortando.
Mas sentiu-se protegida. Mesmo ali, no frio e úmido azulejo.
2 comentários:
Simplesmente lindo!
18 de maio de 2009 às 21:31beijos, muitos
o que eu estava procurando, obrigado
20 de novembro de 2009 às 12:01Postar um comentário