domingo, 29 de maio de 2011

Vida.



Ele parou atrás dela. Ficou por um minuto olhando para sua nuca, o desenho do ombro, os cabelos curtinhos.
Ela se virou e o encarou. Ele desviou os olhos. Ela se voltou para frente.
A fila cresceu e se perdeu virando a esquina. Ele tomou coragem:
- Não anda, né?
- O que?
- A fila...
- É.
Pronto. Ele já tinha dado o primeiro passo. Agora só se ela...
- Mas deve andar. Tô aqui faz tempo...
Ele sorriu confiante. Agora era a vez dele.
- A vida é uma fila...
- Como?
- Minha avó dizia isso.
- Humm...
- Nunca entendi muito isso...
- Ah, deve ser no sentido da espera, das buscas, oportunidades...
Ele ficou confuso. Ela orgulhosa com a própria inteligência.
O silêncio não durou quinze minutos.
- Você segura meu lugar aqui um instante? Já volto.
Ela fez que sim com a cabeça e ele dobrou a esquina acompanhando a fila. Voltou carregando laranjas.
- Espero que goste... Trouxe pra gente.
Ela sorriu agradecida. Logo só havia bagaços dentro do saco plástico.
- Agora é sua vez. Já volto...
E ela sumiu acompanhando a fila. Logo voltou com duas garrafinha de água.
- Uma é pra você... – Ele sorriu agradecido. Ela bebeu em goles miúdos.
- Será que pega mal se sentarmos?
- Onde?
- Aqui mesmo... No chão...
Ele titubeou e ela se jogou ao chão como um desagravo. Puxou ele pelo braço que sentou meio sem jeito. Ficaram ali olhando a fila. Trocaram idéias, charmes e por fim beijos. Doces como são os primeiros. Intensos como se fossem os últimos.
A noite chegou e os dois dormiram ali juntinhos. Aos poucos não era mais uma fila, era um mundo deles, rodando numa órbita particular.
Na manhã seguinte a fome chegou e ele saiu e voltou com frutas. Ele teve sede e ela voltou com mais água. Nem falavam com as outras pessoas na fila e apenas desobedeciam a ordem, às vezes mudando de lugar, às vezes ficando lado a lado.
Dias e noites se passaram e a fila se tornou um lar, um abrigo, um refúgio.
- Estou grávida.
Ele sorriu. Era com certeza o segundo melhor dia da vida dele.
Depois tiveram mais três filhos. Logo cresceram e algumas pessoas reclamaram na fila. Não era normal de uma hora para outra, aqueles furas filas.
E as crianças viraram adultos e se foram. Talvez para outras filas.
E voltou a ficar apenas os dois e a fila. Até que ela...
- Vou comprar água...
- Tem água aqui...
- Você sempre faz isso.
- O que?
- Nunca quer me dar um espaço só meu.
- Quer passar a frente?
- Não, só quero espaço.
Ficaram em silêncio quase dez dias.
Apenas comentários sobre o tempo, sobre uma carta de um dos filhos e sobre a fila.
Um dia ele dormiu. Ao acordar viu, onde ela deveria estar, um bilhete, onde se lia, naquela linda letra dela: “Sua avó tinha razão. Só que a fila anda.”


#
(Uma reprise para movimentar o Blog :)

2 comentários:

Rô Gonzaga disse...

POOOOOOOORRAAAAAAA.

Lindããão demais. :)

Que façamos, furemos e abandonemos muitas filas até o momento de encontrar a fila certa e ela, enfim, parar. ;)

8 de junho de 2011 às 02:27
Kelly Christi disse...

excelente texto que aborda na verdade o que acontece nos convivios, ou em alguns...

respondendo sua pergunta do blog: eu não tenho nada contra tragicomédias, muito pelo contrário, se vc. começar a acompanhar meu blog, caso curta, sei lá, vai entender que o que eu mais abordo são essas coisas rs

abraço, espero que volte, sei blog é bom.

25 de julho de 2011 às 00:07

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