Dia de Mãe
Ela já tinha perdido as contas de quantas vezes havia trocado de roupa.
Não sabia nunca que tipo de traje pedia cada ocasião. Aquela então, nem passava pela sua cabeça.
O sol iluminava com empolgação aquele lado de Copacabana e parecia refletir nas pessoas que atravessavam as ruas correndo, sedentas pelas lambidas da água salgada. A praia recebia e espalhava a todos, naquela hora, em pleno domingo fervilhava, e de longe não se sabia o que era grão de areia ou de gente.
Tumulto maior que aquele só dentro da cabeça de Sandra.
Ligou para a melhor amiga para buscar ajuda sobre seu visual.
- Eu acho que você está é doida, Sandra! Nunca viu a mulher na vida e já vai recebendo ela em sua casa?!
A melhor amiga sempre teve uma mãe por perto. Como poderia ajudá-la na escolha do melhor modelito? Pensou até que ela poderia estar com aquela pontinha de inveja por nunca ter tido a oportunidade de um grande encontro em sua vida. Mas no fundo no fundo sabia que a amiga queria ir mesmo à praia e o tal reencontro havia acabado com seu programa.
Sandra havia investido um bom dinheiro e tempo na procura. Dois detetives, inúmeras ligações, viagens, até em programas de rádio ela conseguiu espaço para fazer seu apelo. Dois anos neste projeto.
Um dia surgiu o telefone de uma ex-vizinha e daí outro de uma prima, de uma amiga e por fim a encontrou. E lá se iam quase trinta anos de espera.
Por telefone trocaram poucas palavras e Sandra se debulhava em lágrimas enquanto falava. Resolveram marcar ao vivo, apagando o que passou.
Começaria do zero, sem mágoas, cobranças, acusações...
Do seu passado, Sandra lembrava em flashes. Foram muitas casas e muitas infâncias diferentes para uma pessoa só.
De casa em casa ela conheceu o afeto, o abuso, o descaso, a dor e muitas vezes o que mais a chocava: nada. Pessoas que não refletiam nela a menor emoção ou curiosidade.
Nestes casos nem era a família que desistia dela, ela fazia de tudo para ser um pouco simpática, afável e virava um móvel feio em meio à mobília.
Melhor ter alguma emoção, boa ou ruim, do que não ter nenhuma.
Aos poucos acabou se acostumando àquela vida de vários lares, várias mães e mãe nenhuma. Era como se fosse sempre um natal, uma casa nova, um novo colo, novos cheiros e ela sendo presenteada com novas pessoas.
Quem olhasse de longe pensava que era um poço de infelicidade. Que nada, afinal, não tinha referência. E cada um sabe a dor que tem. E o peso.
Desligou o telefone e resolveu trocar de roupa mais uma vez. Algo mais leve, solar, despojado talvez. Queria estar radiante.
O interfone tocou e ela em meio à troca. Acabou ficando com um pouco de cada estilo e achou, diante do espelho que até ficou bem. Atendeu o interfone e sentiu um nó na garganta, a voz quase não saiu.
- Alô?
- Dona Sandra? Dona Francisca para a senhora...
- Pode mandar subir, Vanderlei.
Um silêncio se fez. Longo.
- A senhora tem certeza, Dona Sandra? – Cochichou Vanderlei.
- Sim, Vanderlei. - Colocou na voz uma firmeza distante, daquelas que esclarece bem a classe de cada um. - Mande subir!
Vanderlei desligou sem um pio. Ela correu e abriu a porta. Olhou a luz do marcador de andar mudar ao lado do elevador. Nunca nove andares demoraram tanto a passar. No oitavo, Sandra entrou em casa e fechou a porta. As mãos suadas, pizzas de suor desciam pelas axilas, abaixo do nariz uma gota se instalou.
Quando ficava nervosa ou muito excitada, sempre acontecia aquilo. Suava descontroladamente. E às vezes, um cheiro forte e agridoce vinha junto. Lembra que numa das casas ao sentirem seu odor lhe mandaram embora sem mesmo passar da porta.
Levantou os braços e aproximou as narinas o máximo de suas axilas. Nada. Só suor mesmo. Nem dava pra notar.
A campanhia tocou tímida. Sandra se recompôs e olhou pelo olho mágico. Viu de relance a figura miúda à sua porta. Recuou do olho mágico. Falta de educação, sabendo que é, mesmo assim olhar pelo buraquinho na porta. Será que ela notou?
Respirou fundo, colocou o melhor sorriso que podia no rosto e abriu a porta. Na sua frente surgiu uma figura mirrada, amarelada, muitas rugas. Tinha os cabelos de três cores. O branco da raiz vinha seguido de preto e por fim um amarelo queimado. Trajava um conjunto jeans envelhecido e usava uma capanga embaixo do braço. Não esboçou reação alguma e olhava para Sandra sempre na altura do peito.
Um sorriso de canto de boca foi o que ela conseguiu decifrar naquela cara estranha.
- Mãe?
A outra por sua vez esticou a mão num cumprimento de negócios.
- Francisca. Prazer!
Sandra que já havia aprontado um abraço apenas abaixou um dos braços e retribuiu o aperto de mãos, sacudindo o braço de sua genitora com um entusiasmo além da conta.
- Entra, por favor – Dizia Sandra sempre sorrindo.
Ela entrou e ficou em pé no centro da sala. Sandra olhava para a mãe embevecida.
- Me chama de Chica, é como todo mundo me chama...
Sandra ainda vestindo o mesmo sorriso e não sabia o que fazer. Fez sinal para uma poltrona e a Mãe sentou. Ela sentou no sofá à frente.
- O seu mudou, né?
- Como?
- O seu nome... Agora é Sandra. – A Mãe olhava em volta como se fotografasse o local. Olhava para tudo menos a filha.
- Ah, sim. Uma das famílias que morei deu este nome e pedi pra manter. Mas tive outros...
A Mãe soltou um muxoxo.
- Doralina era melhor. Nome da sua avó.
- Eu não sabia... Que legal! – Raízes! Sandra pensou que afinal havia encontrado as suas origens. – Como ela era?
- Velha. Estúpida. Doente. Morreu de cirrose... Ou diabetes... Não lembro. – A Mãe se pôs de pé e começou a andar pela sala olhando os porta-retratos.
Caminhava mastigando o ar num tique pavoroso. Soltava pequenos ruídos, dava muxoxos como se discordasse do que via.
- Você fuma? – Perguntou a Mãe.
- Não. E não acho bom a senhora fumar...
- Você.
- Como?
- Me chama de você. – A Mãe voltou a se sentar, agora no sofá ao lado de Sandra.
- A senhora... Quero dizer... Tá com fome?
- Mais ou menos. Fumaria um cigarro. Mas esqueci os meus.
Almoçaram em silêncio. A mãe fazia grande ruído e no final futucava os dentes com a língua ruidosamente. Sandra olhava fixa para o prato e vez por outra tentava puxar um assunto. As investidas terminavam em grunhidos, chiados e ruídos estranhos que sua mãe produzia. Nada de volta.
Almoçaram em silêncio. A mãe fazia grande ruído e no final futucava os dentes com a língua ruidosamente. Sandra olhava fixa para o prato e vez por outra tentava puxar um assunto. As investidas terminavam em grunhidos, chiados e ruídos estranhos que sua mãe produzia. Nada de volta.
- Você fuma?
- Não.
- Ah é.
Sandra começou a retirar os pratos da mesa, indo e vindo da cozinha. O outro cômodo começou a funcionar como um refúgio para pensar no que fazer. Toda vez que mudava de ambiente se sentia mais leve. Alguma coisa a incomodava no cheiro da mãe e não sabia o quê. Era como o dela, só que mais pesado, forte, ardido.
- Você é a cara do seu pai, escritinha... – Ela sentiu que pela primeira a Mãe olhava para ela no rosto. Sentiu que iria chorar com a bandeja de rosbife nas mãos.
Deixou a carne na cozinha e voltou apressada. Puxou uma cadeira e sentou-se mais à beirada, empertigando o corpo com interesse.
- Aquilo não prestava. – Disse a Mãe cortante. A filha murchou. Olhou em volta e a travessa de arroz foi sua bóia salvadora. Agarrou-a e dirigiu-se a cozinha. Queria gritar, mandar aquela mulher embora, acabar com aquilo tudo. Começou a lavar e esfregar as louças com raiva. Jogou toda a comida fora. Não queria nenhum resto, vestígio ou afins que lembrasse a tal de Chica. Armou seu sorriso e voltou à sala. Sua mãe não estava mais lá. Estranhou. Olhou em volta e nada. Ouviu um ruído vindo de seu quarto e caminhou até ele.
A Mãe, sentada em sua cama, revirava a sua bolsa.
- Mãe?!
Pensou que para a sua sorte sua carteira, força do hábito, dormia na cômoda da cabeceira. Chica apenas deixou a bolsa de lado, nem mesmo a encarou e apenas começou a olhar o quarto a sua volta.
- Queria ver se tinha cigarros...
As duas ficaram em silêncio.
- Quer um café? – Disse Sandra como uma forma de tirá-la do quarto e a si mesma daquela situação. A Mãe deu de ombros e se encaminhou para a sala. Sandra colocou a água no fogão e voltou à sala. Chica já estava na porta.
- Já vou indo.
- E o café?
- Não gosto muito de café.
Chica sem cerimônia abriu a porta e saiu para o corredor. Voltou-se para Sandra mais uma vez.
- Pode me emprestar um trocado? Pra comprar um cigarro...
Sandra ficou sem graça. Andou apressadamente de volta até o quarto, abriu a cômoda e pegou sua carteira. Tomou um susto ao ver que a outra a acompanhara. Mas não perdeu a pose e fingiu naturalidade.
Pode ver pelo canto do olho sua mãe esticar o olho para dentro de sua carteira, como se quisesse ver todo o conteúdo. Enquanto ela lançava seu olhar sobre a mãe, Chica lançava o mesmo olhar sobre a carteira.
Ali ela notou toda a semelhança. Tão parecidas, não poderiam ser outra coisa. Esticou uma nota razoável na direção de Chica que, pela segunda vez na tarde, sorriu.
De volta ao corredor, um novo aperto de mãos, algumas palavras voaram ao teto, ruídos e por fim o elevador chegou. Nenhuma troca de olhar. Sandra fez questão de tocar o botão do térreo.
A porta pantográfica fechou e ela acompanhou cada andar como se fossem as toneladas retiradas de sua costas.
Pela janela viu Chica se afastando pelas ruas lotadas de Copacabana, em meio ao aos ambulantes, banhistas e logo virar grão.
No final, ainda na janela, fez apenas uma pequena nota mental:
- Segunda-feira, colocar pelo menos mais duas trancas na porta.
#Valeu Franklin "Pesanervos" Dassie pelo auxílio luxuoso no título.
6 comentários:
Nossa, essa mãe eu não quero nunca...
11 de setembro de 2009 às 23:08bacana o clima, a gente fica na expectativa, parabéns!!!
11 de setembro de 2009 às 23:33Nossa completamente desconhecidas, mas na verdade tão próxima uma da outra através das características, ótimo texto!
14 de setembro de 2009 às 12:38Mãe sempre é um bom tema. Ainda mais com imaginação e mãos talentosas.
23 de setembro de 2009 às 14:04Mãe sempre é um bom tem. Ainda mais com sua imaginação, técnica e inspiração.
23 de setembro de 2009 às 14:05seu post deixou claro na importancia que damos à aparencia...
25 de setembro de 2009 às 00:22o dilema sagrado de cada dia sobre qual roupa colocar...
as mulheres vao mais além, pensam em muito mais acessórios que os homens...e tudo isso pensando no que os outros vao pensar?
as vezes...
mas as vezes o s vestimos para se sentir bem....
outro dia u cara do meu serviço apareceu de blazer...desses q os apresentadores do fantastico...globo reporter..etc usam...
disse q deu vontade...
curti
Aloha
http://surfinsantoss.blogspot.com/
Postar um comentário