Do Ponto de Vista Da Inveja
Laboratório. Noite. Pipetas, buretas, tubos de ensaio, almofarizes e azulejos. Muitos.
Um branco enorme e uma assepsia de uma clareza de semi-nova.
Ele, o rato de laboratório, passava o bigode por dentro de sua gaiola, em todos os cantos, com aquela inquietação mesquinha dos roedores.
Para cá e para lá.
Os olhos, apenas órbitas pretas, pareciam flutuar, soltos em meio aos pelos de uma brancura inocente. Como os que têm as almas boas e puras. Ou os cínicos.
O outro, o rato de esgoto, apareceu de uma fenda, um buraco, um lapso fedorento daquela alvura toda. Um deslize em toda ordem lógica do lugar.
Tudo tem sua brecha. Todo mundo.
Surgiu do seu jeito encardido, seboso, viscoso, fedorento. De uma cor de terra suja, carregando suas doenças e rejeição. De iguais os ancestrais e a mesma mesquinhez de movimentos.
Roedores parecem àquelas pessoas que comem solitárias em bancos de praças.
Ou entalados nos banquinhos dos fast-foods.
Engoles em pequenas dentadas. Escondendo nas mãos seus alimentos, num misto de vergonha e egoísmo. Depois relegam as suas migalhas aos pombos amaldiçoando o mundo em que animais estúpidos podem voar.
Dois ratos, dois mundos. Que se encaram.
O rato laboratório queria aquela liberdade.
O rato de esgoto queria aquela comida fácil.
O primeiro queria ser marrom, cheirar o medo nas pessoas se deliciar com o horror.
E atacar depois.
O segundo queria ser branquinho, fofo, cheiroso, para poder ser aceito, carinhado.
E atacar depois.
Um e seus vírus de laboratório. Inoculado, testado, experimentado. Mas um na cadeia de produção, cobaia, número apenas um reflexo do que somos.
Outro orgulhoso de todas as pestes ancestrais. Largado, aviltado, desprezado, perseguido. Vivendo em meio ao lixo, restos, excrementos. Ninhada de semelhanças com aqueles que dormem em camas de asilos.
E os olhos brilhavam negros enquanto desejavam. A boca enchendo de água só de pensar na vida do outro. A baba pinga viscosa.
Os olhares se cruzavam, debatiam, confrontavam. Podiam ficar ali secando um ao outro para sempre, por mil anos.
Como a vida, o primeiro precisava ser o segundo. O segundo necessitava ser o primeiro.
Uma liberdade de esgoto? Ou um cárcere farto?
A dúvida é vizinha da inveja na rua das escolhas.
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1 comentários:
Ainda não tinha pensando assim, ou seja, a dúvida tem relação com a inveja.
10 de fevereiro de 2012 às 12:12Enfim, gostei muito deste teu texto. Ele expõe dois mundos, um tão díficil quanto o outro, e nos faz refletir sobre a profundidade das misérias enfrentadas em cada um deles, mesmo que o alimento pareça ser o fator que os separa. Terezinha Souto
www.aquiondeeumoro.wordpress.com
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