O Gênio Ombudsman


(N.R.: A pedidos uma outra reprise.)


E o sujeito esfregou a lâmpada.
E de lá de dentro, num show pirotécnico de cores e explosões surgiu o Gênio.
- Meu amo e senhor, seu pedido é uma ordem... Mas olha lá o que vai pedir pra não se arrepender depois, porque não tô aqui pra isso! -
Sim, era um entidade geniosa, sem trocadilhos.
Na verdade já estava meio de saco cheio daquela profissão.
Afinal, há milhares de anos pediam a ele fama, fortuna, poder, a mulher do outro e ele acabou desenvolvendo um senso crítico aguçado do seu próprio trabalho.
Podemos dizer que era um gênio mais para exigente que para zangado.
Começou a ser irônico em resposta a pedidos mais comuns.
- Quero viver cercado de mulheres! – Pediu um, certa vez, antes de virar um escravo eunuco.
- Quero ser a imagem de um homem poderoso e temido! – e o cara virou um sósia de Bin Laden numa caverna no Afeganistão.
- Quer pedir? Pede direito! – Repetia genial em seu charmoso mau-humor.
- Ué? Mas não eram três pedidos? – perguntou um amo certa vez.
- É a crise! A globalização, a Internet, novos tempos... E vamos com isso!
O camarada ainda estava intrigado com a saída do gênio da lâmpada. Guardava uma expressão de Monalisa fitando a aparição.
O Gênio fechou a cara.
- “Bora” rapaz! De-sem-bu-cha!
O novo amo coçou a cabeça depois deu de ombros.
- Eu não quero é nada... – Virou de costas, jogou a lâmpada por cima do ombro e saiu caminhando.
O queixo do Gênio pendeu na vertical.
- Pêra lá rapá que isso não é assim não! – Deu uma voadinha rápida, deixando um rastro de fumaça mágica atrás de si e ficou frente a frente com o sujeito mais uma vez.
- Que foi? – perguntou o amo ingrato sem paciência.
- Eu é que pergunto o que foi... Você pode ter o que quiser e não quer nada?
- Ah, sei lá cara... Não sei o que pedir... - O outro tentou prosseguir, mas o Gênio colocou-se a sua frente.
- Mulheres?
- Putz! Já tive cinco casamentos fora as amantes... Uma apurrinhação só! Não, tô legal de mulher!
- Dinheiro?!
- As mulheres levaram o pouco que eu tinha... Se eu tiver mais, elas voltam e levam tudo... Não, tô fora.
- AHA! - O Gênio apertou os olhos numa cara maléfica - Poder? Todo mundo quer poder!
- Eu nãoooo! Alguém sempre quer matar o poderoso, fora o olho grande, os falsos amigos... Passo!
O sujeito saiu caminhando e o Gênio foi atrás.
- Ma-ma-mas...
- Não tem mas nem meio mas! Não quero, não posso, não devo...
- Não faz isso comigo. - Suplicou o mago fazendo beicinho.
E assim se passaram dias. Como dever do ofício o Gênio ficava ali, de cima para abaixo acompanhando o cara.
No banho, nas compras, na pelada de quinta, um problemão para entrar em bancos. Geralmente ele entrava e o Gênio ficava ali, preso na porta giratória e se estressando com o segurança.
- Já te disse que não tenho celular amigo! - argumentava.
- Tem que voltar atrás da linha amarela cidadão... - respondia o falso autoridade.
Vez por outra o Gênio puxava assunto e o amo ignorava. Como se ele não existisse ou fosse só fruto da sua imaginação.
Aos comentários dos amigos sobre aquela alegoria flutuante a seu lado ele fazia graça:
- É só um encosto, um exú brabo que uma ex-mulher mandou grudar em mim... Apenas, ignore!
Hoje os dois podem ser visto em várias lugares diferentes da cidade.
Você mesmo já deve ter visto várias vezes.
Ou vai dizer que você nunca viu um gênio sem amo atrás de um homem sem desejos?
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A Fábula do Pé Sujo.

Este conto foi escrito em Dezembro de 1999, para meu amigo Ricardo Siciliano como um presente para sua filhinha Carol.Por eu ser pscicótico, fiz uns ajustes finos e aí está. :)


Madrugada de Natal, entre 03:15 e 05:17 da manhã. As ruas desertas e ninguém, além deste que escreve e aquela figura, sentados num bar fedorento da Rua Prado Júnior. Ninguém mais acreditaria. Nem eu mesmo acreditaria em mim.
Uma garoa fina pairava no ar deixando no chão aquelas poças e o aspecto reluzente de algo que acabou de ser limpo. Mas para limpar aquele ambiente, teria que ser muito mais que água benta.
Putas, gigolôs, pequenos meliantes, bêbados, iam e vinham sem parecer notar aquele coelho sentado a minha frente. Ou não acreditavam em seus olhos ou não queriam mais acreditar em coelhinhos... Ele cantarolava baixinho “coelhinho se eu fosse como tú...” Sorriu. Depois o orelhudo sorveu o seu copo de chope de uma golada só.
(Eu)
- Vai com calma cara...
Tinha encontrado com o Coelhinho da Páscoa numa das boates de strip da própria Prado Júnior. O que eu fazia lá em plena noite de Natal não vem ao caso. Mas o fato foi que alguns seguranças queriam enchê-lo de porrada por causa de uma conta que ele se recusava a pagar. Tentei interferir. Apanhamos os dois. Ainda me doía a nuca e um lado das costas. Os três chopes fizeram a dor ir embora rapidamente.
(Coelhinho)
- Calma é o caralho!
(Eu)
- Sem Stress...
(Coelhinho)
- Tá pensando que é fácil? Tens filhos? Uma trepadinha só e vem eles aos montes! Um saco...
(Eu)
- Ei, o que que há velhinho? – Falei imitando um coelho famoso.
(Coelhinho)
– E não vem me falar neste outro “filhodasputa” que faz sucesso e depois esquece da família. Ta lá nos States, com a bunda cheia de... Carrots!
Ele se aproxima de mim e abaixa aquela longa orelha encardida como se tentasse não ser ouvido pelas outras mesas.
(Coelhinho)
– Minha ex-mulher me deixou por causa dele... Um dia peguei os dois na cama. Depois ela veio me dizer “agora sei porque chamam seu primo de Pernalonga...” Mulher é tudo galinha! Cachorra! Vaca!
(Eu)
- Coelha!
Um vulto rotundo se aproxima da mesa. Sua roupa vermelha tem rasgos e esta suja de fuligem. A barba, outrora branca, agora está cinza e macilenta. Ele bate na própria roupa, o pó sobe. O bom velhinho puxa uma cadeira e se joga pesadamente sobre ela. Faz sinal para o garçom.
(Papai Noel)
– Um chope e um Dreyer...
(Coelhinho)
– Fala Santa!
(Papai Noel)
– Me respeita rapaz! Olha minhas barbas brancas!
(Eu)
– Cinzas...
(Coelhinho)
– Porra, Santa Klaus é teu nome!
(Papai Noel)
– Desculpa! É que depois de aturar tantas crianças malas, fico até sem rumo.
(Eu)
- Crianças malas? Vocês dois são inacreditáveis...
(Coelhinho)
– Todo mundo diz isso...
(Eu)
– Não é isso! Vocês estão muito... Muito... Amargurados. Calma lá, vocês são ícones... – Disse com a voz pastosa. Papai Noel me olhou atravessado.
(Papai Noel)
– Meu filho – Coloca a mão gorda sobre mim – És fresco?
O Coelhinho solta uma gargalhada segurando o saco. Na verdade um saquinho. Ele engasga. Seus olhos vermelhos ficam injetados por um momento. Fica sem ar e seu pelo branco começa a ficar vermelho. O bom velhinho dá-lhe um tapa nas costas. Um naco de cenoura aperitivo voa e cai melado sobre o meu colo.
(Eu)
– Eca...
(Coelhinho)
– Foi mal aê... – diz sorrindo meio sem graça.
Papai Noel me encara de novo.
(Papai Noel)
– Vai vir com aquele papo de “espírito de natal”, “nascimento do menino jesus”, “paz na terra”... O caralho! Tudo é grana!
O garçom serve o Dreyer e ele toma de um gole só. Um fio marrom da bebida escorre pela sua barba. Ele limpa a boca com as costas da mão. O bom velhinho aperta os olhos e me encara com um olhar maroto. Vê claramente que não estou convencido. Ele se aproxima de mim, rosto bem próximo, sinto o cheiro de fuligem, roupa velha, suor e Dreyer, tudo junto.
(Papai Noel)
– Ou o que você acha que a criançada falaria de mim se eu não entregasse um presente este Natal? Filho da Puta seria pouco!
O coelho concordava com a cabeça.
(Eu)
– Então qual a recompensa final? O que vocês ganham com tudo isso?
(Coelhinho)
– Você não gostaria de saber.
(Eu)
– Diz... Pode dizer.
(Coelhinho)
– Você não agüentaria a verdade... – Disse ele imitando Jack Nicholson.
Minha vontade foi dar um tapão no pé da orelha do roedor. As chances de errar eram mínimas. Mantive o fair play.
(Eu)
– Diz logo cacete!
Papai Noel ficou de pé. Segurou sua blusa com as duas mãos e como um tarado exibicionista abriu suas vestes, mostrando a tatuagem enrugada entre as banhas brancas. E eu vi. Tudo tinha ficado claro. Isso explicava tanta coisa. Papai Noel balbuciou.
(Papai Noel)
– Merchadising...
Lá estava ele. O símbolo da Nike. Distorcido pelas banhas do velhinho bebum.
(Papai Noel)
– Muito antes do Ronaldinho eles me procuraram. E não é só... Mostra a ele.
O Coelhinho ficou meio constrangido e se pôs de pé também. Ele virou de costas pra mim abanando o rabinho em forma de pompom.
(Eu)
– Qualé mermão... Acho que ainda não bebi bastante para tal aventura...
(Coelhinho)
– Calma rapaz... Relaxa e olha firme... Que só vou mostrar uma vez.
E levantando o pompom, eu vi outra vez. Ali perto da cloaca um “m”. O McDonald’s havia passado por ali.
(Eu)
– Jesus!
(Coelhinho)
– Ele tem contrato com a Microsoft...
(Papai Noel)
– Está é a verdade meu filho. – Disse colocando as mãos nos meus ombros. Tomei o Chope num gole só. Tudo rodava ao meu redor. O coelhinho e o velhinho voltaram a se sentar. Papai Noel fechava seu roupão e o Coelhinho me olhava sacana.
(Coelhinho)
– Acho que você esta precisando de algo forte. Ô amigão! - O coelhinho acenou para o garçom. – Traz um doze anos!
A primeira garrafa sumiu tão rápido quanto a segunda. De futebol, falamos de mulher e na terceira rodada resolvíamos os problemas do mundo. Eles riam das minhas tiradas e davam tapinhas nas minhas costas repetindo: Cara, você não existe! Logo eu? Logo quem diz isso?
Acordei com a água suja que lavava o chão do bar lambendo os meus pés. O sol de Copacabana espantava as putas, os gigolôs, os mendigos e vampiros. Olhei em volta e meus companheiros de noitada haviam sumido na madrugada do Rio. Teria sido um delírio, uma alucinação, um delirium tremis?
Não. Havia uma prova irrefutável. As duas lendas haviam deixado para traz uma senhora conta. Uma fábula!
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A Tal da Portabilidade

(foto : Úrsula Andress)





Tempos de portabilidade. O cara chega no balcão da loja acompanhado da mulher. Lá se vão 25 anos de casamento. Baseado em fatos reais.


(ATENDENTE)
- Bom dia, em que posso ser útil?


(MARIDO)
- Já está valendo a portabilidade não é meu amigo?


(ATENDENTE)
- Com certeza senhor...

(MARIDO)
- Pois bem. Vim trocar minha mulher...


A mulher faz cara de surpresa.


(MULHER)
- Que isso Almeida? Você está maluco?!

(MARIDO)
- Mariza, se comporta que estou falando com o moço...

(ATENDENTE)
- Qual motivo?


(MARIDO)
- Nossa, ta dando muito defeito!


(MULHER)
- Defeito?! Defeito? Que absurdo, seu... seu... Éumabsurdoquevocêmetrateassimdepoisdetantosanosdecasamentovocêéquevivedandodefeito – A mulher desandou a falar sem parar. Nem respirar ela respirava.


(MARIDO)
- Tá vendo? Travou a falar. Por isso que às vezes não ouço mais e não entendo quando falo. Fora sumir as palavras como agora...


(ATENDENTE)
- É pelo que estou vendo, tá travando mesmo...


(MARIDO)
- Pois é, e já liguei para a garantia, mas os pais responderam: nem pensar! Aí decidi: vou trocar!


(MULHER)
- Você falou com papai e mamãe pelasminhascostasissoéumabsurdoqueeles...


(MARIDO)
- Respira mulher! Não vai ter a idéia de pifar no dia da troca!

O atendente começa a digitar no terminal a sua frente.

(ATENDENTE)
- Qual ano e modelo?!

(MARIDO)
- Ah, antigo... Eu sei que o ano é 62, mas tem dito por aí que é 64, 65...


(MULHER)
- Nasci em Dezembro de 67! Vocêsabedissonemmevenhacomestepapoquevocêsabe muitobemminhaidade – e mais falação. Apnéia total.


(MARIDO)
- Não falei?!


(ATENDENTE)
- Isso acontece muito... E o modelo?


(MARIDO)
- Quando peguei era praticamente uma Ursula Andress, uma Bo Dereck... Lembra?


(ATENDENTE)
- Mais ou menos senhor... Não é muito minha época.


(MULHER)
- Ainda sou de virar a cabeça Almeida!!


(MARIDO)
- Não meu amor, você hoje é dor de cabeça! Por isso que dá problema na conexão!


(ATENDENTE)
- Humm... Ta dando problema na conexão é?


(MARIDO)
- Pois é... Teve uma época que eu até tentava conectar. Aí, era a tal dor de cabeça, não tinha clima, ou ocupado... Aí, não tem banda larga que segure né?


(MULHER)
- Quem? Banda larga você? - a mulher dá um risinho cínico e emenda mais blábláblá.


(ATENDENTE)
- E o número? Quer o mesmo?


(MARIDO)
- Ih! O número mudou muito... Muitos dígitos foram acrescentados ao original! Que o diga a balança! Ah, e já ia esquecendo: é segunda mão!


A mulher pára de falar puxando o ar horrorizada. Ela faz biquinho e faz que prende o choro.


(MULHER)
- Almeida, você sabe que casei virgem!


(MARIDO)
- Não minha filha, você é de Sagitário!


O Marido se aproxima do atendente e cochicha.


(MARIDO)
- Talvez terceira ou quarta mão, fora as linhas cruzadas durante o tempo de contrato!


(MULHER) (enfurecida)
- Linha cruzada? Linha cruzada você vai ver na sua cara seu safado!


A mulher parte para cima do Marido que ginga daqui, ginga dali, foge de uma bolsada, de outra. Enquanto desvia, qual ninja, o marido tripudia.


(MARIDO)
- Ou você acha que eu não sei do Pacheco? Do vendedor de sucos? Do vizinho do 307? Tô antenado! Viva a liberdade de escolha! Portabilidade! Santa portabilidade!


O atendente chama a segurança e dois brutamontes aparecem e arrastam a mulher para o fundo da loja. Ela vai se debatendo e xingando a tudo e a todos. O marido encosta no balcão recuperando o fôlego. O atendente mantém seu ar replicante, olhar simpático e sorriso vidrado, digitando freneticamente.


(MARIDO)
- Pô amigão... Desculpe o papelão. Mas esta mulher e eu, não tínhamos mais ligação...


(ATENDENTE)
- Que isso senhor. Estamos aqui para solucionar seus problemas. E isso tem acontecido muito.


(MARIDO)
- Imagino.


(ATENDENTE)
- Se o senhor visse como está o estoque... Pronto pra escolher um novo modelo?


(MARIDO)
- Sei não, to pensando em algo diferente.


(ATENDENTE)
- Quer ver nosso catálogo, quer alguma sugestão?


(MARIDO)
- Hummm... Este segurança que apareceu a pouco, o mulato, grande, mais novinho... Ele é 3G?
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Bonecas


Tarde.
Ela e a boneca frente a frente. Só o vidro da vitrine separa as duas.
Tem quase a mesma altura. Não se sabe por ela ser mirrada demais para os seus seis anos ou pela boneca ser gigante. Pelo menos pra ela.
Do lado de cá do vidro, uma figura magra, vestido largo. Um dos muitos que passou pelas outras irmãs antes de chegar nela. Canelas finas e sempre russas, cabelos duros, saltando os fios amarelos queimados de sol e quebrando toda aquela finura, uma barriga proeminente de verme e pirão de água. Nem um pingo de saúde brotava dali. O que ao longe do outro lado da vitrine poderia parecer reflexo, era um espelho de contrastes. Um brinquedo, bonito, loiro e sorridente ao extremo.
Mas ela ganhava no olhar. Enquanto a boneca tinha um olhar morto e vidrado os dela eram explosivos de um verde reluzente, vivo, esperto, incompreensível.
A mãe tinha que vir pelo menos três vezes por semana a cidade e ela a acompanhava. Trazia trouxas de roupas lavadas no ribeirão perto de casa. Querendo ou não, seguia naquela viagem longa e cansativa um longo tempo a pé, depois o ônibus quente e às vezes elas ficavam ali por horas sem comer ou beber nada, esperando a condução pra voltar. O cheirinho da roupa lavada a confortava.
E pra driblar o tempo e a fome, ela sempre que podia transformava o próximo minuto em brincadeira e assim as horas passavam mais rápidas.
Já havia alguns tempo em que ela que torcia para aquela hora chegar e poder ficar ali brincando com a boneca mentalmente.
- La-gri-mais-di-ver-da-di... – Leu a outra irmã para ela. Era o escrito lá na caixa, que envolvia o brinquedo, dizia que ela chorava de forma real. E a Boneca conseguia o que ela não conseguia mais.

Noite.
Ela deitada olhando o teto. Uma das melhores brincadeiras era essa, com as sombras que o lampião projetava por todo amianto, fazia figuras, criava bichinhos e coisas que a divertiam.
Na casa de um cômodo só o quarto era sala e vice versa.
Era só chegar à mesa da janta para lá, varrer um pouco a areia do chão e fazer a cama. Na esteira dormiam agora somente ela ao lado da mãe. O pai sempre chegava mais tarde, quando chegava.
Houve tempo em que era ela, as duas irmãs, e os pais.
A mais velha um dia juntou o que podia e ganhou mundo. Vivia brigando com a mãe a qual chamava de nomes feios. Culpava a mãe por algo que ela não entendia. E a cada nova coça, muitas lágrimas e a promessa de sumir. Até que um dia o fez. A outra também se foi. Um tio chegou com algumas notas, entregou ao pai e a levou para passear, segundo a mãe. A irmã chorou muito, dizia que não queria ir. Mas foi mesmo assim com o tio arrastando-a pelo braço. Aí foi a mãe que chorou um bocado. Depois parou e ficou zangada. Por tudo.
Insistir em perguntar o porquê era certeza de um bom tabefe. Ela, pra não incomodar mais ninguém, resolveu não chorar mais.
Já tinha lágrima demais no chão daquela casa. Daria pra fazer um lago de págua salgada.
Uma das sombras era a imagem da irmã mais velha dando banho nela e cantando cantigas. Ela adorava aquilo. Ficava com cheiro bom e o mundo mais leve.
A porta se abriu e o lampião tremulou, fazendo com que a irmã sumisse mais uma vez. Se não fosse a valentia e o querosene ele apagava. Mas não apagou.
Era o Pai chegando com grande estardalhaço. Xingando, derrubando coisas, maldizendo o mundo. Pela silhueta no teto, viu quando ele se despiu e se aproximou da esteira, dando arrotos que fizeram que o cheiro da mangaceira empestiasse o local. Murmurou algo para a mãe que abriu espaço entre as duas. Adorava o cheiro da mãe. Aquele do pai, não. Porque ela se afastava?
Ele deitou entre elas e virou de costas para a mulher como se não existisse.
Levantou a fina coberta e se encostou-se murmurando com a voz trêmula e pastosa:
- Cadê a bonequinha do papai? – E começou a brincar com ela, de coisas estranhas. Já tinha visto aquelas brincadeiras antes, mas com ela era a primeira vez. Ela desejou que aquilo não demorasse muito, fechou os olhos e fingiu dormir.
A irmã havia deixado este truque como herança.

Manhã
Ela sabia que devia ser começo de mês.
Quando tinha manteiga para passar no aipim no café da manhã, o pai tinha ganho algum trocado.
Era pra ser um dia feliz.
Mordia o seu naco de mandioca cozida e não entendia porque sua mãe a olhava atravessada. Nem banho nela tinha dado.
Ela sentia dores e um corrimento descia por sua perna fina. Mas não falou nada.
Resolveu ficar num canto no quintal, torcendo pela hora de brincar de novo com sua boneca.


Tarde
Enquanto sacudia no ônibus, ela lembrava da vez que um moço lhe deu um sacolé. Este dia sim a viagem tinha sido deliciosa.
Desceram e caminharam um par de horas carregando trouxas. Ela queria dizer para a mãe que estava pesado, que o cheiro do sabão em pedra, com o cheiro da cachaça em seu corpo a estava deixando tonta, com ânsias... O medo sempre cala. O silêncio estranho durante toda a viagem deveria significar algo.
Foram a duas ou três casas, falaram com muitas moças, entregaram roupas, pegaram roupas, entregaram roupas, pegaram roupas e já voltavam ao ponto de ônibus.
A única novidade foi um suco de acerola e limão que havia tomado numa das casas. Aquela tia era sempre a mais simpática, um olhar que era um abraço e cheiro de alfazema.
A casa dela era linda, branquinha e com chão de verdade. Ela às vezes imaginava morar ali, ter um quarto só dela, uma cama com colchão para dormir abraçada com sua boneca.
No quintal faria bolinhos de barro e margaridas para as duas brincarem de casinha. Teria uma coleção de roupinhas, uma para cada dia da semana.
As duas se vestiriam iguais até. Todo mundo pensaria que eram irmãs.
Sonhava com isso tudo enquanto tenta acompanhar o passo da mãe, alguns metros mais à frente. Ao longe avista sua lojinha. A ansiedade é grande e em momentos sente que seu coração vai saltar e sair correndo a sua frente.
A mãe parou no ponto e deixou a trouxa de roupas cair da cabeça para o chão. Fez isso a tantos anos que sua destreza em não derrubar qualquer peça é impressionante. Ela pousou as sacolinhas que carregava ao lado e caminhou até a vitrine com o rosto trincado. Do outro lado, ao invés de ver seu reflexo perfeito, via agora um trenzinho. Olhou em volta para se certificar se era a mesma loja, a mesma praça, o mesmo mundo. Era.
Sua boneca havia ido embora. Assim como a sua irmã mais velha e depois a outra. Assim como as tardes alegres, assim como os bolinhos de barro e tantas fantasias.
Foi quando ela olhou mais de perto e viu ali um rosto de olhos vidrados chorando.
Olhos sem vida, tristes, distantes. Alguma coisa havia quebrado em sua boneca. Ela pensou até em sorrir ao rever o brinquedo.
Mas não era. Era apenas o seu reflexo e lágrimas de verdade.
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