Vida


Ele parou atrás dela. Ficou por um minuto olhando para sua nuca, o desenho do ombro, os cabelos curtinhos.

Ela se virou e o encarou. Ele desviou os olhos. Ela se voltou para frente.

A fila cresceu e se perdeu virando a esquina. Ele tomou coragem:

- Não anda, né?

- O que?

- A fila...

- É.

Pronto. Ele já tinha dado o primeiro passo. Agora só se ela...

- Mas deve andar. Tô aqui faz tempo...

Ele sorriu confiante. Agora era a vez dele.

- A vida é uma fila...

- Como?

- Minha avó dizia isso.

- Humm...

- Nunca entendi muito isso...

- Ah, deve ser no sentido da espera, das buscas, oportunidades...

Ele ficou confuso. Ela orgulhosa com a própria inteligência.

O silêncio não durou quinze minutos.

- Você segura meu lugar aqui um instante? Já volto.

Ela fez que sim com a cabeça e ele dobrou a esquina acompanhando a fila. Voltou carregando laranjas.

- Espero que goste... Trouxe pra gente.

Ela sorriu agradecida. Logo só havia bagaços dentro do saco plástico.

- Agora é sua vez. Já volto...

E ela sumiu acompanhando a fila. Logo voltou com duas garrafinha de água.

- Uma é pra você... – Ele sorriu agradecido. Ela bebeu em goles miúdos.

- Será que pega mal se sentarmos?

- Onde?

- Aqui mesmo... No chão...

Ele titubeou e ela se jogou ao chão como um desagravo. Puxou ele pelo braço que sentou meio sem jeito. Ficaram ali olhando a fila. Trocaram idéias, charmes e por fim beijos. Doces como são os primeiros. Intensos como se fossem os últimos.

A noite chegou e os dois dormiram ali juntinhos. Aos poucos não era mais uma fila, era um mundo deles, rodando numa órbita particular.

Na manhã seguinte a fome chegou e ele saiu e voltou com frutas. Ele teve sede e ela voltou com mais água. Nem falavam com as outras pessoas na fila e apenas desobedeciam a ordem, às vezes mudando de lugar, às vezes ficando lado a lado.

Dias e noites se passaram e a fila se tornou um lar, um abrigo, um refúgio.

- Estou grávida.

Ele sorriu. Era com certeza o segundo melhor dia da vida dele.

Depois tiveram mais três filhos. Logo cresceram, e algumas pessoas reclamaram na fila. Não era normal de uma hora para outra, aqueles furas filas.

E as crianças cresceram e se foram.

- Vou compra água...

- Tem água aqui...

- Você sempre faz isso.

- O que?

- Nunca quer me dar um espaço só meu.

- Quer passar a frente?

- Não, só quero espaço.

Ficaram em silêncio quase dez dias.

Apenas comentários sobre o tempo, uma carta de um dos filhos e sobre a fila.

Um dia ele dormiu. Ao acordar onde ela deveria estar apenas um bilhete, escrito:“Sua avó tinha razão. Só que a fila anda.”
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Vingança na carne

Não gostava de ir a supermercados. Nunca gostou.
Mas todo sábado estava lá pontualmente no zig e zag entre gôndulas, produtos e ofertas.
Começou contrariado, mas mesmo mudando duas vezes de casamento, não mudava os hábitos.
A única diferença, vez por outra, eram os estabelecimentos.
Aos poucos, aquilo acabou se tornando uma distração.
A nova mulher havia anotado tudo, somado tudo, e hoje era o dia de inauguração de um novo super, com muitas ofertas.
“A Festa de Inauguração é nossa, mas quem ganha o presente é você!”
O locutor berrava pelos alto-falantes como se estes não existissem.
O local estava cheio, vez por outra, no momento de uma das ofertas da hora, ficava intransitável.
“Arroz Agulhinha Sensação, de cinco e noventa baixou para quatro e trinta. Pacotão de cinco quilos.” E o corredor do arroz virava um formigueiro, que consumia os pacotes em segundos.
A nova mulher se atirava no meio da multidão, engolida pela horda.
Ele ficava observando alerta. Mas toda vez era o mesmo.
Ela surgia do meio do mar de gente, como uma sereia, sacudindo o saco de arroz como se fosse um troféu.
E seguiam.
Ele aproveitava para colocar os pensamentos em dia.
E foi em meio à fila da carne que aconteceu.
O locutor tinha acabado de anunciar que filé mignon havia descido a preços de fácil digestão.
Combinaram. Ele enfrentava a fila enquanto a nova mulher comprava os artigos de limpeza. Uma das únicas seções que não o seduziam muito. Não conseguia entender aquela obsessão feminina pelo limpo.
Mas também, os pratos que colocava na pia sujos, sempre encontrava limpos depois. Ou seja: a ele aquilo não atingia.
A fila cresceu rapidamente. Ele pensava em sua sorte de estar perto da seção exatamente na hora do anúncio. Era, no máximo, um dos dez primeiros.
- Mourão? – Engraçado, já havia ouvido aquele nome antes. Mas ali, dentro de seus pensamentos estava, ali permaneceu...
- Ô Mourão! – Viajou para Londrina, o colégio de Padres, mais de 30 anos. Era com ele. Virou e encarou a fila. Um sujeito rotundo e espaçoso acenava pra ele.
- Porra, eu sabia que era você camarada! – Mais de 20 carrinhos separavam os dois na fila. Porém, sem a menor cerimônia o gordo se aproximou dele.
- Não lembra mais do amigo Periquito? – Veio como um estalo. Periquito o bom de bola, de zona, de droga, de mulher... Periquito um mito. Mas, não cabia aquele corpanzil que terminava numa cabeça careca e de gorda papada na imagem que ele guardava na memória.
- Porra Mourão, nem faz esta cara que me arrasa... Mudei muito foi?
Não. Toda mudança pressupõe algum resquício, algo quase como uma referência, mas ali naquele rosto não havia nada. Era outra pessoa estranha a ele. Sorriu apenas.
Se bem que nunca foram conhecidos. Periquito da turma do fundão da sala de aula. Ele sentava nas primeiras fileiras. Um misto de bom-mocismo com a miopia que demorou a descobrir.
E no fundo no fundo, Periquito sempre guardou distância dele, sacaneando-o por tudo e na frente de todos. A cada pergunta, a cada dúvida, a cada resposta.
Na verdade mesmo, Periquito sempre tripudiou dele. Ou era uma moca, um “barata voa” com os livros, um futebol com a mochila nova. Periquito não prestava.
Fechou a cara e o sorriso. Olhou Periquito no fundo dos olhos.
- Amigão, deve ter me confundido. – E aproveitando que a fila andava se afastou um pouco. Periquito veio atrás.
- Que isso Mourão, que papo é esse... – Algumas pessoas na fila protestaram.
“O cara não te conhece!” “Olha a fila!” “Só no Brasil mesmo...”
Ele olhava para frente e nem encarava mais Periquito.
- Acho melhor voltar para seu lugar...
Periquito olhou o final da fila. Depois olhou para o filé mignon que a cada novo pedido sumia dos ganchos na geladeira. Periquito lançou um olhar de súplica para ele e sussurrou.
- Mourão meu velho, se eu não chegar com esta carninha em casa, minha mulher me mata...
O mito caiu. De um filé mignon dependia a sobrevivência do mais valente da sua juventude. Ele estufou o peito e encarou Periquito. Tinha um "foda-se" na ponta da lingua. Mas antes de falar ouviu o açougueiro gritar: “Próximo!”.
Deu de ombros e empurrou o carrinho na direção do balcão.
- O senhor me dá dez quilos por favor! – Disse alto bastante para ter certeza de ser ouvido. – Tudo em bife! - Nem em 6 meses comeria tanta carne. Mas era o suficiente para que a carne não desse para todos na fila. No máximo mais 10 carrinhos.
Pelo reflexo do vidro ainda viu Periquito se afastar cabisbaixo. Nem para a fila ele voltou, sumindo entre a massa de consumidores que brigavam na promoção do óleo de soja.
E enquanto pegava os vários embrulhos de carne pensava em como era a vingança. Que às vezes se realiza na fila da carne.
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