A Tal da Portabilidade


Tempos de portabilidade. O cara chega no balcão da loja acompanhado da mulher. Lá se vão 25 anos de casamento. Baseado em fatos reais.

(ATENDENTE)

- Bom dia, em que posso ser útil?

(MARIDO)

- Já está valendo a portabilidade não é meu amigo?

(ATENDENTE)

- Com certeza senhor...

(MARIDO)

- Pois bem. Vim trocar minha mulher...

A mulher faz cara de surpresa.

(MULHER)

- Que isso Almeida? Você está maluco?!

(MARIDO)

- Mariza, se comporta que estou falando com o moço...

(ATENDENTE)

- Qual motivo?

(MARIDO)

- Nossa, ta dando muito defeito!

(MULHER)

- Defeito?! Defeito? Que absurdo, seu... seu... Éumabsurdoquevocêmetrateassimdepoisdetantosanosdecasamentovocêéquevivedandodefeito – A mulher desandou a falar sem parar. Nem respirar ela respirava.

(MARIDO)

- Tá vendo? Travou a falar. Por isso que às vezes não ouço mais e não entendo quando falo. Fora sumir as palavras como agora...

(ATENDENTE)

- É pelo que estou vendo, tá travando mesmo...

(MARIDO)

- Pois é, e já liguei para a garantia, mas os pais responderam: nem pensar! Aí decidi: vou trocar!

(MULHER)

- Você falou com papai e mamãe pelasminhascostasissoéumabsurdoqueeles...

(MARIDO)

- Respira mulher! Não vai ter a idéia de pifar no dia da troca!

O atendente começa a digitar no terminal a sua frente.

(ATENDENTE)

- Qual ano e modelo?!

(MARIDO)

- Ah, antigo... Eu sei que o ano é 62, mas tem dito por aí que é 64, 65...

(MULHER)

- Nasci em Dezembro de 67! Vocêsabedissonemmevenhacomestepapoquevocêsabe muitobemminhaidade – e mais falação. Apnéia total.

(MARIDO)

- Não falei?!

(ATENDENTE)

- Isso acontece muito... E o modelo?

(MARIDO)

- Quando peguei era praticamente uma Ursula Andress, uma Bo Dereck... Lembra?

(ATENDENTE)

- Mais ou menos senhor... Não é muito minha época.

(MULHER)

- Ainda sou de virar a cabeça Almeida!!

(MARIDO)

- Não meu amor, você hoje é dor de cabeça! Por isso que dá problema na conexão!

(ATENDENTE)

- Humm... Ta dando problema na conexão é?

(MARIDO)

- Pois é... Teve uma época que eu até tentava conectar. Aí, era a tal dor de cabeça, não tinha clima, ou ocupado... Aí, não tem banda larga que segure né?

(MULHER)

- Quem? Banda larga você? - a mulher dá um risinho cínico e emenda mais blábláblá.

(ATENDENTE)

- E o número? Quer o mesmo?

(MARIDO)

- Ih! O número mudou muito... Muitos dígitos foram acrescentados ao original! Que o diga a balança! Ah, e já ia esquecendo: é segunda mão!

A mulher pára de falar puxando o ar horrorizada. Ela faz biquinho e faz que prende o choro.

(MULHER)

- Almeida, você sabe que casei virgem!

(MARIDO)

- Não minha filha, você é de Sagitário!

O Marido se aproxima do atendente e cochicha.

(MARIDO)

- Talvez terceira ou quarta mão, fora as linhas cruzadas durante o tempo de contrato!

(MULHER) (enfurecida)

- Linha cruzada? Linha cruzada você vai ver na sua cara seu safado!

A mulher parte para cima do Marido que ginga daqui, ginga dali, foge de uma bolsada, de outra. Enquanto desvia, qual ninja, o marido tripudia.

(MARIDO)

- Ou você acha que eu não sei do Pacheco? Do vendedor de sucos? Do vizinho do 307? Tô antenado! Viva a liberdade de escolha! Portabilidade! Santa portabilidade!

O atendente chama a segurança e dois brutamontes aparecem e arrastam a mulher para o fundo da loja. Ela vai se debatendo e xingando a tudo e a todos. O marido encosta no balcão recuperando o fôlego. O atendente mantém seu ar replicante, olhar simpático e sorriso vidrado, digitando freneticamente.

(MARIDO)

- Pô amigão... Desculpe o papelão. Mas esta mulher e eu, não tínhamos mais ligação...

(ATENDENTE)

- Que isso senhor. Estamos aqui para solucionar seus problemas. E isso tem acontecido muito.

(MARIDO)

- Imagino.

(ATENDENTE)

- Se o senhor visse como está o estoque... Pronto pra escolher um novo modelo?

(MARIDO)

- Sei não, to pensando em algo diferente.

(ATENDENTE)

- Quer ver nosso catálogo, quer alguma sugestão?

(MARIDO)

- Hummm... Este segurança que apareceu a pouco, o mulato, grande, mais novinho... Ele é 3G?
Ler Mais

Dia de Mãe


Ela já tinha perdido as contas de quantas vezes havia trocado de roupa.
Não sabia nunca que tipo de traje pedia cada ocasião. Aquela então, nem passava pela sua cabeça.
O sol iluminava com empolgação aquele lado de Copacabana e parecia refletir nas pessoas que atravessavam as ruas correndo, sedentas pelas lambidas da água salgada. A praia recebia e espalhava a todos, naquela hora, em pleno domingo fervilhava, e de longe não se sabia o que era grão de areia ou de gente.
Tumulto maior que aquele só dentro da cabeça de Sandra.
Ligou para a melhor amiga para buscar ajuda sobre seu visual.
- Eu acho que você está é doida, Sandra! Nunca viu a mulher na vida e já vai recebendo ela em sua casa?!
A melhor amiga sempre teve uma mãe por perto. Como poderia ajudá-la na escolha do melhor modelito? Pensou até que ela poderia estar com aquela pontinha de inveja por nunca ter tido a oportunidade de um grande encontro em sua vida. Mas no fundo no fundo sabia que a amiga queria ir mesmo à praia e o tal reencontro havia acabado com seu programa.
Sandra havia investido um bom dinheiro e tempo na procura. Dois detetives, inúmeras ligações, viagens, até em programas de rádio ela conseguiu espaço para fazer seu apelo. Dois anos neste projeto.
Um dia surgiu o telefone de uma ex-vizinha e daí outro de uma prima, de uma amiga e por fim a encontrou. E lá se iam quase trinta anos de espera.
Por telefone trocaram poucas palavras e Sandra se debulhava em lágrimas enquanto falava. Resolveram marcar ao vivo, apagando o que passou.
Começaria do zero, sem mágoas, cobranças, acusações...
Do seu passado, Sandra lembrava em flashes. Foram muitas casas e muitas infâncias diferentes para uma pessoa só.
De casa em casa ela conheceu o afeto, o abuso, o descaso, a dor e muitas vezes o que mais a chocava: nada. Pessoas que não refletiam nela a menor emoção ou curiosidade.
Nestes casos nem era a família que desistia dela, ela fazia de tudo para ser um pouco simpática, afável e virava um móvel feio em meio à mobília.
Melhor ter alguma emoção, boa ou ruim, do que não ter nenhuma.
Aos poucos acabou se acostumando àquela vida de vários lares, várias mães e mãe nenhuma. Era como se fosse sempre um natal, uma casa nova, um novo colo, novos cheiros e ela sendo presenteada com novas pessoas.
Quem olhasse de longe pensava que era um poço de infelicidade. Que nada, afinal, não tinha referência. E cada um sabe a dor que tem. E o peso.
Desligou o telefone e resolveu trocar de roupa mais uma vez. Algo mais leve, solar, despojado talvez. Queria estar radiante.
O interfone tocou e ela em meio à troca. Acabou ficando com um pouco de cada estilo e achou, diante do espelho que até ficou bem. Atendeu o interfone e sentiu um nó na garganta, a voz quase não saiu.
- Alô?
- Dona Sandra? Dona Francisca para a senhora...
- Pode mandar subir, Vanderlei.
Um silêncio se fez. Longo.
- A senhora tem certeza, Dona Sandra? – Cochichou Vanderlei.
- Sim, Vanderlei. - Colocou na voz uma firmeza distante, daquelas que esclarece bem a classe de cada um. - Mande subir!
Vanderlei desligou sem um pio. Ela correu e abriu a porta. Olhou a luz do marcador de andar mudar ao lado do elevador. Nunca nove andares demoraram tanto a passar. No oitavo, Sandra entrou em casa e fechou a porta. As mãos suadas, pizzas de suor desciam pelas axilas, abaixo do nariz uma gota se instalou.
Quando ficava nervosa ou muito excitada, sempre acontecia aquilo. Suava descontroladamente. E às vezes, um cheiro forte e agridoce vinha junto. Lembra que numa das casas ao sentirem seu odor lhe mandaram embora sem mesmo passar da porta.
Levantou os braços e aproximou as narinas o máximo de suas axilas. Nada. Só suor mesmo. Nem dava pra notar.
A campanhia tocou tímida. Sandra se recompôs e olhou pelo olho mágico. Viu de relance a figura miúda à sua porta. Recuou do olho mágico. Falta de educação, sabendo que é, mesmo assim olhar pelo buraquinho na porta. Será que ela notou?
Respirou fundo, colocou o melhor sorriso que podia no rosto e abriu a porta. Na sua frente surgiu uma figura mirrada, amarelada, muitas rugas. Tinha os cabelos de três cores. O branco da raiz vinha seguido de preto e por fim um amarelo queimado. Trajava um conjunto jeans envelhecido e usava uma capanga embaixo do braço. Não esboçou reação alguma e olhava para Sandra sempre na altura do peito.
Um sorriso de canto de boca foi o que ela conseguiu decifrar naquela cara estranha.
- Mãe?
A outra por sua vez esticou a mão num cumprimento de negócios.
- Francisca. Prazer!
Sandra que já havia aprontado um abraço apenas abaixou um dos braços e retribuiu o aperto de mãos, sacudindo o braço de sua genitora com um entusiasmo além da conta.
- Entra, por favor – Dizia Sandra sempre sorrindo.
Ela entrou e ficou em pé no centro da sala. Sandra olhava para a mãe embevecida.
- Me chama de Chica, é como todo mundo me chama...
Sandra ainda vestindo o mesmo sorriso e não sabia o que fazer. Fez sinal para uma poltrona e a Mãe sentou. Ela sentou no sofá à frente.
- O seu mudou, né?
- Como?
- O seu nome... Agora é Sandra. – A Mãe olhava em volta como se fotografasse o local. Olhava para tudo menos a filha.
- Ah, sim. Uma das famílias que morei deu este nome e pedi pra manter. Mas tive outros...
A Mãe soltou um muxoxo.
- Doralina era melhor. Nome da sua avó.
- Eu não sabia... Que legal! – Raízes! Sandra pensou que afinal havia encontrado as suas origens. – Como ela era?
- Velha. Estúpida. Doente. Morreu de cirrose... Ou diabetes... Não lembro. – A Mãe se pôs de pé e começou a andar pela sala olhando os porta-retratos.
Caminhava mastigando o ar num tique pavoroso. Soltava pequenos ruídos, dava muxoxos como se discordasse do que via.
- Você fuma? – Perguntou a Mãe.
- Não. E não acho bom a senhora fumar...
- Você.
- Como?
- Me chama de você. – A Mãe voltou a se sentar, agora no sofá ao lado de Sandra.
- A senhora... Quero dizer... Tá com fome?
- Mais ou menos. Fumaria um cigarro. Mas esqueci os meus.
Almoçaram em silêncio. A mãe fazia grande ruído e no final futucava os dentes com a língua ruidosamente. Sandra olhava fixa para o prato e vez por outra tentava puxar um assunto. As investidas terminavam em grunhidos, chiados e ruídos estranhos que sua mãe produzia. Nada de volta.
- Você fuma?
- Não.
- Ah é.
Sandra começou a retirar os pratos da mesa, indo e vindo da cozinha. O outro cômodo começou a funcionar como um refúgio para pensar no que fazer. Toda vez que mudava de ambiente se sentia mais leve. Alguma coisa a incomodava no cheiro da mãe e não sabia o quê. Era como o dela, só que mais pesado, forte, ardido.
- Você é a cara do seu pai, escritinha... – Ela sentiu que pela primeira a Mãe olhava para ela no rosto. Sentiu que iria chorar com a bandeja de rosbife nas mãos.
Deixou a carne na cozinha e voltou apressada. Puxou uma cadeira e sentou-se mais à beirada, empertigando o corpo com interesse.
- Aquilo não prestava. – Disse a Mãe cortante. A filha murchou. Olhou em volta e a travessa de arroz foi sua bóia salvadora. Agarrou-a e dirigiu-se a cozinha. Queria gritar, mandar aquela mulher embora, acabar com aquilo tudo. Começou a lavar e esfregar as louças com raiva. Jogou toda a comida fora. Não queria nenhum resto, vestígio ou afins que lembrasse a tal de Chica. Armou seu sorriso e voltou à sala. Sua mãe não estava mais lá. Estranhou. Olhou em volta e nada. Ouviu um ruído vindo de seu quarto e caminhou até ele.
A Mãe, sentada em sua cama, revirava a sua bolsa.
- Mãe?!
Pensou que para a sua sorte sua carteira, força do hábito, dormia na cômoda da cabeceira. Chica apenas deixou a bolsa de lado, nem mesmo a encarou e apenas começou a olhar o quarto a sua volta.
- Queria ver se tinha cigarros...
As duas ficaram em silêncio.
- Quer um café? – Disse Sandra como uma forma de tirá-la do quarto e a si mesma daquela situação. A Mãe deu de ombros e se encaminhou para a sala. Sandra colocou a água no fogão e voltou à sala. Chica já estava na porta.
- Já vou indo.
- E o café?
- Não gosto muito de café.
Chica sem cerimônia abriu a porta e saiu para o corredor. Voltou-se para Sandra mais uma vez.
- Pode me emprestar um trocado? Pra comprar um cigarro...
Sandra ficou sem graça. Andou apressadamente de volta até o quarto, abriu a cômoda e pegou sua carteira. Tomou um susto ao ver que a outra a acompanhara. Mas não perdeu a pose e fingiu naturalidade.
Pode ver pelo canto do olho sua mãe esticar o olho para dentro de sua carteira, como se quisesse ver todo o conteúdo. Enquanto ela lançava seu olhar sobre a mãe, Chica lançava o mesmo olhar sobre a carteira.
Ali ela notou toda a semelhança. Tão parecidas, não poderiam ser outra coisa. Esticou uma nota razoável na direção de Chica que, pela segunda vez na tarde, sorriu.
De volta ao corredor, um novo aperto de mãos, algumas palavras voaram ao teto, ruídos e por fim o elevador chegou. Nenhuma troca de olhar. Sandra fez questão de tocar o botão do térreo.
A porta pantográfica fechou e ela acompanhou cada andar como se fossem as toneladas retiradas de sua costas.
Pela janela viu Chica se afastando pelas ruas lotadas de Copacabana, em meio ao aos ambulantes, banhistas e logo virar grão.
No final, ainda na janela, fez apenas uma pequena nota mental:
- Segunda-feira, colocar pelo menos mais duas trancas na porta.



#Valeu Franklin "Pesanervos" Dassie pelo auxílio luxuoso no título.
Ler Mais

Marcadores

3G (1) A Fábula do Pé Sujo (1) A Fábula do Pé Sujo. (1) A Lápide (1) A Tal da Portabilidade (1) A Unidos dos Dois na Sala (1) A Virada do Ano (1) aeromoça (1) aladin (1) Amor a primeira vista (2) amores impossíveis (1) ano novo (1) Arrumação (Em Cadeados) (1) As Cores Dela nas Paredes da Cabeça Dele (1) As Sereias da Estante (1) Assalto (1) assassinato (1) Até que a morte nos separe. (2) avião (1) Bacon (1) barrinha e cereal (1) Bonecas (2) Cabeça (1) cachorro (1) Cadê Deni”zs”e? (1) Caixa Preta (1) caos aéreo (1) carros (1) casa de malucos (1) cereser (1) Céu de Cereal (1) circo (1) Com Deus Só a Vista. (1) concurso (1) construir (1) conto (17) Conto de amor (1) Contos do Rio (4) Copa do Mundo (1) Copacabana (1) Coração Roubado (1) Cortazar (1) cronica (1) Crônica (1) Crônicas (1) desejo (1) Dia de Mãe (1) Dia dos Namorados (2) ditos (1) Do Frio e Branco Azulejo (1) Do Ponto de Vista da Inveja (2) Dos seus saltos (1) Encontros (1) engarrafamento (1) Engolir Palavras (1) espumante (1) Existe Vida após a Morte. (1) fantasia (1) farol (1) Fred (1) Fundo do Poço (1) gênio (1) Ginger (1) Hamburguer (1) humor (6) Idéias (1) Kama $utra (1) lâmpada (1) linchamento (1) luz no fim do túnel (1) Mãe (1) Mãe e Filha (1) manicômio (1) Maradona (1) Marias Chuteiras (1) Me acertou em cheiro (1) menage (1) Mentirinha (1) Mil e uma noites (1) Moleque de Rua (1) Musical (1) O Buraco (1) O Cão de olhos com brilho de diamantes (1) O Engolidor de Palavras (2) O Gênio Ombudsman (2) O Globo (1) O Homem que Não Queria Ir a Copa do Mundo (1) O Que Não é Mais Gente (1) O T da Questão (1) O Último Dia (1) obra (1) Obras (1) orelhão (1) Os cílios postiços dos postes da avenida (1) pão doce (1) Passatempo (1) Pensamento (1) pião (1) poema (7) poesia (6) Portabilidade (2) prosa (1) Quando Ela Perguntou a Ele se estava caindo (1) revertere ad locum tuum (1) rosquinha (1) Saindo do armário (2) Sobre a última Estação. poesia (1) soco (1) sonha-me (1) suruba (1) swing (1) Técnico de Futebol (1) tecnologia (1) Teu Esmalte (1) Teu jogo (1) Top Blog (1) Traição (1) troca de casal (1) trocando de mulher (1) Ursula Andrews (1) Vida (2) vida de cão (1) Vida de Operário (1) Vida. (1) Vingança na carne (1) violência (1)