quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Do Frio e Branco Azulejo


Sentiu seu corpo rodopiar. Bateu uma, duas, talvez três vezes contra a parede molhada. Sua perna assumiu uma posição incompatível com o corpo. Ouviu o barulho claro de osso quebrando. Nunca havia quebrado nada na vida, mas sabia que não podia ser outro ruído. Caiu.

- Ai! – Um grito curto, abafado, pra ninguém. Se ela estivesse distraída, como a pouco pelo sabonete, nem ela mesma teria escutado.

Um filete de sangue corria para o ralo levado pela água morna que vinha do chuveiro.

Ela gritou. Muito. Várias vezes. Nada.

O registro do chuveiro começava a sumir em meio ao vapor da água. Ela esticou a mão como se tentasse alcançar dali debaixo. Nada.

Via apenas suas mãos em meio a nuvem morna. Reparou nas pintas, nas rugas, que surgiam aos montes, misturando-se com as rugas que agora por causa da água e enrugavam também a palma da mão.

Ficou parada por um momento reparando o próprio corpo, os seios flácidos, a barriga branca, os pelos pubianos fartos e agora brancos, quase que totalmente.

A dor já se afastava dela e ela só se sentia dormente. Cada vez mais.

Ela tentou se virar para abrir a porta de alumínio, mas seu próprio corpo inerte impedia.

Por um instante se lembrou da sua pequena banheirinha, da mãe, dos objetos inalcançáveis e da segurança daqueles banhos à tarde.

Era como se de um momento para o outro sua mãe fosse surgir em meio ao vapor, para enrolá-la na toalha cheirando a talco e alfazema.

Até a velha canção da hora do banho veio à tona.

- Os olhos da minha filhinha, são pretos que nem carvão... – ela se pegou cantando. Sua voz era tão parecida com de sua mãe, e agora sua filha tinha o mesmo tom.

Olhou para cima encarando as gotas que caiam em sua direção e pensou em chuva. Sempre adorou chuva. Com o passar do tempo, e das neuras do marido, passou a temê-la. Nunca soube ao certo porquê. Apareciam algumas nuvens no horizonte e eles se apressavam a fechar portas, janelas e aguardar como sentinelas.

Lembrou da chuva que a pegou desprevenida no Passeio, em frente à Mesbla, do beijo roubado subindo a Rua das Marrecas, do hotel com cheiro de água sanitária, da gravidez inesperada. Talvez tudo tenha sido tão rápido porque ele também usava Alfazema.

O marido nunca desconfiou de nada, mas nunca tratou a filha mais nova como tratava os meninos mais velhos. Ela se fez acreditar que era por ser mulher e o marido sempre quis ter filhos, machos, varões.

Estes se perderam no mundo mas a filha ficou a seu lado.

Insistia em que ela não estava mais na idade de morar sozinha. Filhos não sabem das coisas.

Ela podia sentir ali, em meio ao vapor o cheiro, o gosto e a vontade do beijo.

Algo invadiu suas narinas, suor e Alfazema tomavam o Box. O odor veio forte, denso, quente.

Sentiu no corpo algo que não sentia há anos e ficou mais confortável. A dor ia longe.

Antes de fechar seus olhos e se preparar para sumir na escuridão, ainda conseguiu ouvir ao longe.

- Mãe?

Não sabia se era sua filha, sua mãe ou se ela mesmo se confortando.

Mas sentiu-se protegida. Mesmo ali, no frio e úmido azulejo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente lindo!

beijos, muitos

18 de maio de 2009 às 21:31
Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado

20 de novembro de 2009 às 12:01

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