Revertere ad locum tuum




- Jesus, Maria, José! – Gritou Maria Helena com a carta nas mãos.


- O que foi minha filha? – Alípio respondeu da sala.


- Esta carta é do Governo... Estão suspendendo sua aposentadoria!


- Alegando o que?!


Alípio deixou o jornal cair ao chão e foi ao encontro de Maria Helena na cozinha.


- E o que eles estão alegando?!


- Alípio... Você... Você... Morreu! – Disse a mulher procurando assento numa das cadeiras do jogo de cozinha comprado à prestação para o Natal passado.


Aos poucos com a dificuldade da leitura dele, pela a perda constante dos óculos e até mesmo uma certa falta de saco, ela começou a abrir todas as correspondências da casa. Alípio não tinha nada a temer. Sujeito correto e íntegro, nunca havia atrasado uma conta na vida, pacato ao extremo. Em seu emprego nunca soube o que era promoção, nem fazia por onde, nem reivindicar queria. Achava que o justo era o que a gente recebia. Nada de dar passo maior que a perna. E por isso, ele não dava passo algum. Avançar mais do que se pode é abusar da sorte. Se não fosse prevenido desse jeito não estaria hoje, após 40 anos de serviço, gozando da farta aposentadoria de auxiliar administrativo.


Por isso, era estranho da parte dele morrer e não avisar a ninguém.


- Como você pode fazer isso comigo Alípio? Como? – Maria Helena começou a chorar enxugando as lágrimas com o perfex da cozinha.


- Maria Helena meu amor, que absurdo é esse? Tô aqui vivinho da silva. Deve ser algum engano... – tentou consolar ele. Ela olhou para o marido e o tocou como se para confirmar.



No dia seguinte apressaram-se a ir num destes órgãos públicos, que não funcionam, para averiguar o ocorrido. Chegaram cedinho e demoraram horas até serem atendidos. Depois de muito verificar no tal sistema, o servidor público explicou com cara de tédio.


- É seu Alípio, tá aqui: o senhor morreu...


- Mas como? De que? Onde?


- E já tem uma semana...


- Uma semana Alípio? E eu sou a última a saber?


- Mas eu tô aqui, na frente de vocês!


- Sim Seu Alípio! E o documento também. E o sistema não erra essas coisas...


Se diz que morreu é porque morreu... Ou o senhor vai questionar os milhões que foram investidos para poder tornar tudo informatizado e mais garantido para a população... É a segurança que contribuintes idôneos precisam!


- Não, não! Não sou eu que vou questionar isso não... Quem sou eu! Um pobre coitado que não tem onde cair morto... – Disse Alípio tentando ser irônico.


- Mas é melhor o senhor se apressar porque morto o senhor já está...


Maria Helena segurava o choro entre a revolta e a vergonha.


- Ah! Seu Alípio, só me resta avisar que se o senhor não morreu, pode ser acusado de fraude... 15 anos de prisão no mínimo. – E virando-se para Maria Helena completou com um sorriso maroto – E os beneficiários vão junto!


A mulher levantou-se apressadamente puxando Alípio pelo braço.


- Muito obrigado moço! Não vamos tomar mais seu tempo.


Enquanto aguardavam o ônibus, ele reclamava e ela de cara fechada. Ele reparou.


- Que cara é essa Maria Helena?


- Você não podia fazer isso comigo Alípio.


- Mas o que eu fiz minha filha?


- Morrer assim, sem reclamar, sem planejar direito... Isso é sua cara.


- Mas...


- Não sei não Alípio! Não sei mesmo! Esta história esta muito mal contada.


Chegando em casa, logo na porta um burburinho.


O que Alípio temia aconteceu: a notícia se espalhou.


Amigos, parentes e curiosos se amontoavam em frente ao seu portão. Quase nada acontecia naquela rua e uma morte era um grande acontecimento. E um morto do qual se pode se despedir ao vivo era imperdível.


Até um pipoqueiro e um vendedor de cuzcuz tinha na frente.


Enquanto Alípio atravessava a pequena multidão ganhava tapinhas nas costas e cumprimentos sofridos.


- Cara, você vai fazer falta – Disse um.


- Meus sentimentos... – Arriscou outro.


- Vai um cuzcuz como última refeição, patrão? – arriscou o ambulante.


- Me diz aí Alípio, como é o outro lado? – Puxou papo um mais animado.


Alípio com sorriso amarelo seguia em frente rumo a sua casa, a seu lado uma Maria Helena constrangidíssima.


Na sala o genro e a filha o esperavam.


- Papai... Papai, vou morrer de saudades! – disse a filha choramingando.


- Pois é sogrão, e o terreno em Cabo Frio? Como fica? – completou o genro sem interesse.


Maria Helena aos prantos correu para o quarto e se trancou. Alípio foi atrás. Ele dava batidinhas na porta e pedia que ela abrisse. Levou uns dez minutos e a porta se abriu. Toda de preto com direito a véu, Maria Helena surgiu pela porta como uma viúva perfeita.


- Quié-qui-é-isso, Maria Helena?


- Sou viúva Alípio. E vou me portar como tal... E se você realmente se importasse comigo, colocaria seu melhor terno...


Alípio entendeu o recado. Arrastou-se para dentro do quarto fechando a porta atrás de si. Sabia que não tinha o que contestar. Se o governo dizia, os vizinhos e parentes se despediam e até sua mulher já aceitava, não seria ele a criar caso ou ir contra os fatos! Definitivamente não era seu estilo. Logo apareceu elegante, com o terno do batizado do neto. Um conjunto cinza ainda no vinco. Dica do vendedor:


- A cor serve para casamento, batizado, comunhão e até enterro. Nos dias de hoje o que se puder economizar é melhor não é? – Lembrava as palavras do homem da loja.


A filha veio ao seu encontro.


- Meu pai, você está tão... tão... – Desabou a chorar sendo consolada pelo genro.


- Não esquece o terreno seu Alípio, o terreno... – disse piscando o olho.


Foi então que notou que a sala já estava preparada.


No local não havia mais espaço para viva alma. Sem trocadilhos.


Todos de preto contrastavam com as grandes coroas de flores que enfeitavam o ambiente. Ao fundo uma música com ares fúnebres. Um garçom ia e vinha com quitutes frios e refrigerantes quentes nos copinhos de plásticos.


Alípio perguntou para o genro.


- Como vocês prepararam tudo tão rápido?


- Ora seu Alípio, quem tem amigos não morre sozinho! Eu mesmo cuidei de tudo! Olha a qualidade das Coroas de Flores! – Dizia orgulhoso apontando uma onde se lia: “Morto em combate”.


- O que quer dizer isso?


- Pois é! Fizeram um descontão num material que já havia na loja e eu aproveitei! O que vale é a intenção né sogrão? – o quase filho sorria feliz orgulhoso. Lembrou do vendedor de mesmo sorriso e sussurrou baixinho para ele mesmo.


- Nos dias de hoje o que se puder economizar...


E se encaminhou para mesa onde já havia um espaço reservado para o morto, no caso, ele. Pediu licença a um, a outro, se aproximando sem pressa sentou-se sobre o tampo deitando em seguida. Silenciosamente as pessoas organizaram uma fila para cumprimentar a esposa, a filha e o genro sorridente.


- Meus sentimentos...


- Pêsames...


- Ele vai fazer falta...


- Meus sentimentos...


E se repetiam as falas. Ele ali, olhos fixos no teto. Sabia que deveria dar duas mãos ali. Aquela tinta não ia segurar e logo estaria descascando. Mas a mulher teimou.


- Ninguém olha pro teto. – E lá estava ele agora. Olhando.


A mulher se aproximou.


- O que você está fazendo?


- Ué, to aqui quietinho. Mortinho...


- De olhos abertos Alípio? Olha o mal-estar que está ficando isso aqui. Você está deixando as pessoas constrangidas...


Ele olhou em volta e acho que ninguém dava atenção a isso.


A bebida quente e os salgados frios pareciam mais interessantes. Mas pra que perturbar a patroa?


- Tá bom, ta bom, eu fecho os olhos... – E cerrou os olhos. Foi quando de sua barriga um ronco imenso se ouviu. Sua esposa nem tinha se afastado e já voltou a carga.


- Alípio, por favor. O que é isso agora?


- É que não almocei nada lindinha... Será que não posso comer uma empadinha?!


- O que vão dizer da gente Alípio... Morto comendo empada?


- Uma só vidinha...


Ela fez charminho e depois fez que sim com a cabeça.


- Uma só Alípio! E depois morra por favor.


- Ta bom meu amor! Te amo.


Um garçom se aproximou e Alípio rapidamente abocanhou duas empadas e alguns copinhos de refrigerante.


E logo ocupou sua posição de defunto.


Ali, deitado, olhos cerrados não era muito diferente do seu dia-a-dia, pensou.


Na sua cabeça começou a lembrar dos seus filmes prediletos que a TV sempre repetia. Das notícias dos jornais sempre as mesmas. Pensou na sua vida, eterna reprise de dias. Não era isso a morte? Então era só se acostumar a idéia, como sempre se acostuma a tudo.


- Nossa! Ele está tão corado...

- Parece até que vai sair andando...

- Nem aparenta a idade que tinha...


Ele ouvia a todas as observações com um sorriso sem exageros nos lábios.


- Tive sorte de me cuidar e morrer bem, inteiro... – Pensou. E depois lembrou da empadinha e sentiu lá longe que a fome se avizinhava mais uma vez.


Mas resolveu não comer mais nada para não encabular os vizinhos nem a família.


Afinal, em poucas horas estaria descansando em sua cova. E a fome só iria atrapalhar seu descanso eterno.

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Até que a morte nos separe.

E ele beijou-a nos lábios. Primeiro suavemente, depois cheio de volúpia, gana, vontade mesmo. Ela ali, completamente entregue.


Aquilo era um sorriso? Sim, ele tinha certeza que era um sorriso.


Tinha pouco tempo mas não tinha pressa nenhuma. Queria namorar um pouco, sentir os cheiros daqueles cabelos sedosos que pareciam vindos diretos de uma propaganda de shampoo até suas mãos. Podia sentir a textura de cada fio, mesmo usando aquelas grossas luvas. Cabelo grande, liso, macio...


Se soubesse do encontro, teria tomado um banho, usado aquela colônia nova que comprou na revistinha da colega de faxina. Poria uma camisa mais da moda, sapatos. Sapatos sempre impressionam as mulheres, sei lá. Ela merecia.


Mas quase sempre estes encontros aconteciam assim, sem se esperar. Tudo em cima da hora.


Ele ainda com sua roupa de trabalho, aquele macacão horrendo, aquelas luvas amarelas pesadas, enquanto apenas um lençol cobria o corpo dela. Foi desembrulhando cuidadosamente, com os olhos gordos de criança que ganha um presente maior que esperava.


Sabia que se as coisas fossem diferentes poderia até ser correspondido como queria.


Talvez algumas pessoas estranhassem a diferença de idade, ele já carregava mais de trinta e cinco anos de frustrações, broncas e cabeça baixa. Até por isso, quem lhe conhecia ficava surpreso ao entender que ele não tinha os cinqüenta e poucos que usava em sua vida todos os dias.


Já ela não. Tinha o frescor e o olhar distante, daqueles que com vinte e poucos anos acham que o mundo é um umbigo. Bonita, aspecto saudável, rosto lindo e bem desenhado.


Não. Ele olhava para ela e via claramente que agora que os anos nunca seriam empecilho para os dois. Não daquele jeito. Não naquela madrugada. Nunca mais.


Se a realidade fosse outra e o acaso ajudasse, ele sabia que poderia conquistá-la realmente.


E a levaria ao cinema, ao parque, ao zoológico. Não. Zoológico fede. Ele já havia trabalhado em um e todo mundo suja tudo, cheiro de cocô de bicho para tudo quanto é canto. Não. Ela merecia mais.


Um restaurante bacana, um rodízio de pizza de vários sabores, quem sabe?


Tinha um ótimo na perto da casa dele. Ele pagaria.


Mas dava pra ver de cara que ela, com aquele ar de Patricinha, não era muito chegada a subúrbios. Tampouco era chegada a massas. A barriguinha durinha e bem dividida, dava sinais claros de muito tempo de malhação e cuidados.


O dinheiro traz isso.


A pele macia, de uma branquice imensa, guardava lá longe uma marquinha de biquíni de uma praia que com certeza ele não freqüentaria. No máximo para limpar. Rico suja tudo e nem liga para o filho da puta que está ali limpando. Só falta jogar lixo na gente.


Voltou a ela.


Os seios duros, rijos, de bicos rosas, apontavam para cima com a certeza da juventude. Ele passou a mão sobre eles e sentiu claramente que ficavam duros. Tinha certeza absoluta. Ali era tudo dele.


“São em momentos como estes que somos todos iguais, não é mesmo?” Diria o seu amigo vigia. “Ou cagando, ou morrendo, ou trepando... Todo mundo é igual.”


Disse o vigia certa vez enquanto jantavam suas quentinhas no salão maior.


O amigo tinha sorte de ser casado. Sempre trazia uma comida legal, uma carne assada, um frango ensopado, batata-frita. Ele adorava batata-frita. Na latinha dele sempre macarrão. Era o que ele sabia fazer, o que comia e o que sofria para colocar pra fora horas depois. Por que ele não podia ter batata frita na sua marmita? Ela não tem cara de quem vai pra cozinha!


Beijo-a de novo agora com raiva, posse e para provar que podia tudo, mordeu seu lábio.


- Poxa! Desculpe! machucou?


Ela nada disse. Ficou ali imóvel fitando o teto distante dele.


Aquilo o deixava doido. O sangue subiu a cabeça e ele pulou as preliminares. Tirou o macacão, cueca e ficou nu sobre ela. Vestia apenas as luvas, sua mania.


- Olha como você me deixa... – Adorava a sensação de tocar em si mesmo com aquela aspereza nas mãos.


A penetrou com força e sentiu o corpo sobre ele tremer com sua vontade. Começou a ir e vir e sentiu que ela balançava de um lado para o outro como se não tivesse vontade própria.


Aquilo o deixava doido. Não resistiu e lascou-lhe um tapa na cara. Ela não reagiu. Outro. Mais outro e sentiu o alivio vir da sua cabeça e sair pelas suas partes. Havia acabado. Com ele aquilo era sempre rápido. As namoradas reclamavam, a ex-esposa também. Por isso apanhavam, depois diziam que não entendiam o porquê. Lembrou de todas as outras e saiu de cima dela ainda com raiva.


- Vocês são tudo iguais... Ta pensando que é melhor que eu? – Enquanto colocava sua roupa, desfilou uma série de palavrões dos mais variados, com tal raiva que os perdigotos saiam como chuva. Nada parecia ofendê-la.


Aquilo o deixava doido, vontade de pegar a sua vassoura e...


- Que porra é essa Elias?! – O vigia entrou e sua postura voltou a de sempre. Cabisbaixo, sem encarar, pacato. Agarrou a vassoura que já segurava e colocou a sua frente como se pudesse se esconder por de trás dela.


- Nada não, nada demais... – Disse ele ainda arrumando a roupa.


- Você tava gritando feito louco... Já terminou?!


Ele balançou a cabeça afirmativamente. O vigia se aproximou dela examinando seu rosto. Ele cruzou o braço sobre o peito e enterrou a cabeça no próprio tronco, procurando no chão com o olhar um espaço entre seus próprios pés. O vigia arregalou os olhos.


- Caralho! Tu bateu nela?!


- Esbarrei... A pele tá sensível, eu acho... Vão pensar que foi do acidente...


- Já te pedi pra não bater nas peças... Se tu não se controlar isso ainda vai dar merda. Cadê meu dinheiro? – Fez um sinal de grana com os dedos e esticou a mão espalmada na direção dele. Ele tirou umas notas amassadas do bolso e entregou ao vigia.


- Me ajuda a arrumar o lençol... O legista chega as duas e a peça tem que estar arrumadinha!


Ele olhou o grande relógio da parede. Faltavam 15 minutos. Fizeram as coisas sem pressa. Cobriram o corpo, empurraram a maca até próximo as gavetas da geladeira e removeram-na para dentro de uma delas cuidadosamente. Ele fechou a gaveta lentamente como se despedisse. O vigia notou então que ele chorava contido.
Um choro cheio de soluços, catarro, dor, falando palavras baixinho pra ele mesmo como numa reza contrita. Vez por outra limpava o nariz com a blusa.


Toda vez ele tinha que consolá-lo.


- Relaxa cara. Em breve a gente vai ter carne nova no pedaço... – Falou enquanto dava-lhe tapinhas nas costas.


Aquilo sempre o confortava. No final, sempre tem.

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Swing



Casa de swing, quarto do tatame coletivo, meia luz, um monte de gente nua e gemendo.

Ele sentiu uma cutucada. E por estar onde está, logo olhou na direção do que o cutucava.

Era um dedo. Ufa. E do Oliveira da contabilidade. Completamente vestido.

- Sabia que era o senhor seu Flávio.

São poucas as opções numa situação desta. Ele podia fingir que não era ele. Mas ali, pelado, em meio ao coito, era muita cara de pau se fazer passar por outra pessoa.

Fingiu naturalidade e sorriu para o Oliveira.

- Tudo bem Oliveira?

- Tudo certo Seu Flávio!

Os dois ficaram se entreolhando por um tempo. Ele tentou continuar concentrado no que fazia mas com o Oliveira ali, encarando, ele se sentia meio nu.

- Posso ajudar em alguma coisa, Oliveira?

- Oh! Não... Desculpe seu Flávio... Só estou esperando minha mulher... Só isso.

E Oliveira continuou sorrindo com cara de bom moço enquanto ele fazia o possível para não perder a concentração. Afinal, não era todo dia que ele encontrava uma mulata como aquela por ali. E apesar da sua esposa ser loira, as mulatas sempre o tiraram do sério. E aquela ali era um espetáculo. E ele sentia que estava quase lá, quase terminando, quase... Quase...

- Ah, que grosseria a minha. Nem apresentei vocês! – O Oliveira cutucou a mulata com que ele se ocupava. – Marluce, este é o Seu Flávio... Vice-presidente lá da empresa...

Ela olhou para trás por cima dos ombros e sem perder o ritmo respondeu com um sorriso maroto.

- Prazer...

- Ô! – Disse ele voltando a ganhar fôlego.

- Bacana o lugar aqui não é? – Pois é. O Oliveira queria assunto.

- Hum, hum... – Disse ele ali, ainda nos trabalhos.

- É a nossa primeira vez, né Marluce? –

- Hum, hum... – Respondeu ela, ainda nos trabalhos.

- O senhor veio sozinho ou a patroa está por aí?

- Sim, vim... com... a minha...

- Eu a conheci na festa de fim de ano, lembra? Dona... Dona...

- Marly! Hummmm...

- Isso! Tava aqui na ponta da língua!

Oliveira se calou por um segundo e ele achou que estava livre dele.

- Um primo meu é segurança... Arrumou pra gente vir! – Oliveira esticou o pescoço como se procurasse alguém. – Olha ele ali com sua esposa, Seu Flávio!

Ele olhou na direção de um bolo de umas três ou quatro pessoas. No meio pôde reconhecer sua esposa.

- É o mais moreninho... Aquele que puxou o cabelo dela! Dá-lhe Dona Marly!

De lá de onde estava Dona Marly se desvencilhou um pouco do musculoso que puxava seus cabelos e retribuiu com um tchauzinho agradecendo a saudação de Oliveira. Ele viu quando Oliveira gargalhou e na empolgação deu um tapinha em sua bunda nua.

Naquele exato momento algo nele aconteceu. Uma vibração, um êxtase, um orgasmo como nunca havia vislumbrado antes. Soltou um uivo e um grito. Algo preso em seu peito queria sair, voar, voar e voar. E olhou para trás e Oliveira estava lá, impávido, sorridente, com aquela cara de “estou sempre a seu dispor”.

- Terminou Seu Flávio?! É que a gente mora longe...

Na segunda demitiu Oliveira. Aquele cara o deixava confuso demais.


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Bacon


Debaixo do papelão e do jornal surgiu o moleque.

A figura esquálida e encardida parecia mais uma sobra do que o próprio ser que a carregava. Bermuda larga, suja, camiseta sem mangas, uns dois números maiores com propaganda de político, suja, e tênis, um pé de cada, sujos. Todo o conjunto tinha um tom sobre tom marrom que combinava com a pele e a cor do centro da cidade.

Ele espreguiçou até não poder mais e em certo momento as costelas pareciam querer rasgar aquele pele macilenta que cobria o seu peito.

Tirou o pinto pra fora e urinou fartamente sem ligar que ali, na Avenida, logo as nove da matina, a maioria das senhoras e senhoritas passavam a caminho de seus trabalhos. Por um momento parou de ser paisagem e virou absurdo.

O que antes parecia uma figura de dar pena, daquelas que a gente passa ao largo e ao longe parecia um cano vazando, agora, por conta do atentado ao pudor, lembrava um ser humano.

E a urina jorrava farta, amarela e brilhante, descrevendo um arco no ar. Ele parecia sentir orgulho daquilo e brincava com a potência do jato procurando acertar cada vez mais longe.

Sorria mostrando os dentes beges e irregulares.

Idade? Quando cutucava os vidros, tentando vislumbrar os fantasmas que guiavam os carros, fazia cara de 10 ou 11 anos. Quando tocava terror, abusando dos outros garotinhos e garotinhas

mostrava uma virilidade de mais de 18 anos. Por isso, podemos ter uma média.

Nem ele sabia. Nem a ele importava.

Acabou de mijar e balançou o pênis como se fosse um troféu e um abuso a todos. Viu de longe o Guarda Municipal que se aproximava avisado por alguém. Deu de ombros.

Nem por milagre com aquela barriga toda o meganha poderia alcançá-lo. Mas o seu instinto sabia que ele não viria sozinho. São sempre covardes e não seguem regras na brincadeira. Sempre vem de dois contra um ou mais.

Por isso, era bom não ficar mais por ali.

Amanhã arrumava outro quarto, tem tantas opções. Afinal, a cidade há mais de tantos anos era sua casa. Toda. Sala, cozinha, quarto, playground, piscina... Tudo era dele. E cada canto ele conhecia como cada ponto manchado em sua pele.

Nem correu. Apenas apressou o passo e sumiu como camaleão na paisagem. Puxou a pele da barriga alongando o estômago. Sabia que aquilo significava fome.

Naquela hora sempre tinha uma senhorinha ou um boy que, tomando café, compadecia da cara que vestia aquela hora. Coitado.

Tinha uma casa de sucos ótima duas ruas mais abaixo e ele caminhou sem pressa. Ao contrário do que se imagina, adorava aquela sensação de “o que será que vou comer?” Ontem teve um resto de café com leite, um gole de refresco de acerola, meio misto quente e depois de uma futucada no lixo achou uma coxinha quase inteira.

As vezes em dias de feira tinha as frutas que escolhesse na hora da Xepa. Quase todas limpas, quase todas boas, quase todas saborosas.

O dia de verão prometia ser quente e equanto caminhava fez sua programação. Depois do café um bom mergulho no chafariz perto da igreja grande. Ali também poderia fazer suas necessidades e partir para planejar o almoço.

Queria experimentar o novo hambúrguer que via nas propagandas dos ônibus. Sabia qual era a lanchonete pelas cores e pela marca. Chegando lá era só apontar:

- Quero aquele da foto e uma Coca grande.

Esta parada de juntar letras definitivamente não era com ele nem pra ele. Não entrava na sua cabeça.

Enquanto cutucava os clientes da lanchonete, com aquele discurso ensaiado, pensava em onde encontraria o hambúrguer da vez. Hambúrguer era uma forma carinhosa de tratar suas presas, seus ganhos.

- Me paga um café, por favor? – Era um mantra repetido a cada nova cutucada nos clientes. Muitos olhavam e balançavam a cabeça negativamente. Outros agarravam a bolsa e negavam também. Outros olhavam e nada viam, só o marrom do centro.

Mas, água mole em pedra...

- O que você quer? – Aquilo o despertou do plano perfeito. Porta da grande loja. Por volta de meio-dia ficava lotado e muitos garotos ficavam por ali pedindo. Ele viu quase como real o hambúrguer saindo com uma bolsa grande, cheia, com várias coisas para ele.

Era tanta a experiência que ele podia dizer claramente o que havia na bolsa só pela cara do sanduba. Sabia só de olhar quem tinha um bom celular, não aquelas merdas pré-pagas, as que teriam um bom batom pra trocar por um boquete, as que teriam fotos pra ele imaginar sua família. Era crânio nisso.

O bom samaritano teve que repetir pra ele cair em si.

- O que você quer moleque?

Ele respondeu meio puto.

- Um joelho e suco de laranja.

- Ô Oliveira, da um joelho aqui e um refresco pro garoto.

- Não quero refresco não, quero suco!

- Tu é folgado hein moleque...

- Este refresco é uma merda.

- Então come só o joelho, e não fode! – Pra ele tanto fazia. Nem estava com sede. Tinha fome e o joelho o seguraria até o hambúrguer. O atendente escolheu um da vitrine e ele apontou o vidro.

- Este não, o outro! – Foi como se ele não existisse. E o Oliveira fez que não ouviu e esticou o salgado na direção dele. “Nessas horas eu queria ter um berro! Não, uma granada seria melhor... Levava todo mundo comigo sorrindo...” E abocanhou com raiva seu café da manhã.

Pegou carona no vai e vem do centro e as pessoas sumiram pra ele e vice-versa. E para sua surpresa não precisou caminhar muito. Dali de onde estava avistou um suculento hambúrguer duplo. Ele já tinha provado um daqueles antes. Era um verdadeiro xis-tudo.

Sacolas nas mãos, ar distraído e uma bolsa de couro linda, gorda, farta dando mole.

Roliça daquele jeito, apenas um esbarrão e ia ao chão. Enquanto o povo entendia o que estava acontecendo, ele puxava a bolsa, e saia livre ganhando a avenida principal.

Naquela hora era perfeito, pois a maioria dos de farda azul ou estavam no estresse do trânsito ou fazendo sua boquinha de café da manhã 0800, porque afinal ninguém é de ferro. Sabia que o principal era criar tumulto, pânico, terror. As pessoas paralisam e este é o tempo, para ele abrir pra a avenida principal tornando-se mais uma vez invisível.

A invisibilidade é um dom dos que são largados como ele. Não, na cabeça dele nem passa pena, ou menos valia. Pois quando quer e precisa ele se faz notar.

O Xis-tudo está prestes a perceber.

Ele caminha despreocupado e parece que faz compra com a senhora. Um toque de celular, não poderia ser melhor. Ele vê quando seu almoço pára, solta as bolas no chão e procura o celular na principal. O aparelho é bacana.

Aquele seria um momento ideal, afinal a distração é total. Mas não, o aparelho é perfeito. Daquele que tem tecladinho e um monte de “praqueisso”.

Podia esperar e o papo parecia que ia levar tempo.

Ficou ali de cócoras, observando o sol e o movimento. Sem nunca tirar o olho da presa. Seu Xis-tudo falava a vontade e parecia não ter segredos para o mundo.

Ouviu em detalhes do tratamento da mãe, já idosa, tadinha, sim, sim, oitenta anos... As fezes já sem consistência, a doença de nome estranho, a mudança constante de enfermeiras – “Ninguém tem paciência com ela...” – a promessa da visita, beijos, ligo sim, tchau.

Ele esticou o pescoço ainda agachado como quem queria vislumbrar o mundo de delícias que viriam de dentro daquele troféu.

O exato momento ficava entre o colocar do celular dentro da bolsa e o soltar antes dela voltar ao ombro. Ali estava o ponto frágil.

Preparou o bote e sentiu a boca se encher de água na expectativa do banquete.

Com certeza seriam dois ou três da novidade da lanchonete de marca.

A madame apenas deixou o aparelho escorregar para dentro da bolsa e ele partiu a caça.

Seu corpo se movia com graça e leveza. Seus músculos apareciam sobre a pele num desenho

lindo. Num movimento gracioso fez a senhorinha rodopiar no ar, junto com ele num balé mágico e desabar no chão quase que imediatamente. Em segundos a bolsa já estava em suas mãos e a rua se abria a sua frente com um mar de possibilidades. Nada pessoal, só a vida na savana.

Pediria mais molho, queijo extra e bacon. Muito bacon. Sua boca salivava e sem sentir sua baba voou no vento.

A bala estava apenas a milímetros de sua cabeça.

O bacon crocante foi seu último pensamento antes de virar um pequeno ponto vermelho naquele marrom todo.




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Passatempo

E o homem olhou o tempo.

E o tempo todo olhava o homem.

E marcaram de se encontrar em minutos.

Levaram horas.

Sempre o homem atrasava ou o tempo passava rápido demais.

O homem queria levar metade do tempo para tudo.

Neste meio tempo, não conseguia fazer nada.

O homem que construía pontes, dinheiro, fama, fortuna reclamava
o tempo todo.

Um dia o tempo desistiu. E parou de passar.

E o homem nunca mais encontrou tempo para nada.
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Kama $utra


- Me beija.
Os dois deitados. A casa em perfeito silêncio. Noite.
O beijo começou leve e em pouco tempo ganhou contornos mais densos. Ela parou.
- Putz... A escola da Maria Clara...
- O que?
- Não paguei... Esqueci por completo... Deixei ali perto do computador e esqueci.
- Paga on line...
Ela levantou e sumiu para fora do quarto.
Ele ficou olhando o nada na escuridão pensando em temas que segurassem sua ereção. Não deu. Ela voltou.
- Pagou?
- Sim, acho que sim... Amanhã era mais 10%...
- Hummm....
Ela deitou e ficaram por um minuto olhando o teto.
- Me beija...
Selinho. Língua. Ela ficou rapidamente molhada. Ele sempre tinha este efeito sobre ela.
- Ouviu isso?
- Não...
Ficaram olhando na escuridão na direção da baba eletrônica. Tosse e um choramingo. O aparelho pisca.
- Vou lá ver...
- Deixa que eu vou.
Ele levantou e saiu do quarto. Ela ficou na escuridão, atenta ao diálogo dele com o filho no outro quarto. Ele falava como se um adulto o ouvisse.
Quando ele voltou, ela estava sentada na cama.
- Que cara é essa?
- Ele dormiu?
- Sim... Deve ter sido só um pesadelo... Mas que cara é essa?
- A gente tem que levar ele de novo naquele médico...
- Eu sei... É só eu receber que eu levo.
- O que será esta tosse?
Ele deitou sem responder. Sabia que nenhuma resposta seria suficiente.
- Deita.
Ela apenas deixou seu corpo escorregar para baixo do edredom. Os dois bocejaram quase ao mesmo tempo.
- Me beija.
Ficaram ali se beijando, acariciando, tentando encontrar novidades. Estavam quase prontos.
Ele parou.
- O carro ficou pronto...
Ela distraída com o beijo continuou. Repentinamente parou também.
- Porque lembrou disso agora?
- Porque se pegar o carro, não tem grana pro médico...
Ela sentiu seu seio perder a rigidez ainda nas mãos dele.
Ficaram se entreolhando. Aquele papo mental de casal.
- Você podia pedir pra sua mãe...
- Nem pensar!
Falaram quase juntos. Sorriram por um adivinhar o pensamento do outro.
- Pegando o carro tem que ligar pro carinha do seguro...
- E daqui a dois meses tem que separar a grana do IPVA...
- Tem que passar dinheiro pra conta...
- O especial... Já tô de novo no especial.
Um imenso silêncio invadiu o quarto dos dois que agora partiam distantes para seus pensamentos. As frases flutuavam sem direção pelo ar. Eco. De já vu. Mais do mesmo.
Longe um do outro e o desejo perdido em algum lugar.
Ela ainda pensou nas compras. Ele lembrou de pagar a pelada de quinta.
Ela virou de bruços e abraçou o travesseiro e ele de imediato colocou a perna sobre ela. Bocejaram outra vez juntinhos e se entregaram ao sono.
Depois de tantas posições, estavam exaustos.
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Punta del Este.
Música Jorge Drexler.
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