Revertere ad locum tuum
- Jesus, Maria, José! – Gritou Maria Helena com a carta nas mãos.
- O que foi minha filha? – Alípio respondeu da sala.
- Esta carta é do Governo... Estão suspendendo sua aposentadoria!
- Alegando o que?!
Alípio deixou o jornal cair ao chão e foi ao encontro de Maria Helena na cozinha.
- E o que eles estão alegando?!
- Alípio... Você... Você... Morreu! – Disse a mulher procurando assento numa das cadeiras do jogo de cozinha comprado à prestação para o Natal passado.
Aos poucos com a dificuldade da leitura dele, pela a perda constante dos óculos e até mesmo uma certa falta de saco, ela começou a abrir todas as correspondências da casa. Alípio não tinha nada a temer. Sujeito correto e íntegro, nunca havia atrasado uma conta na vida, pacato ao extremo. Em seu emprego nunca soube o que era promoção, nem fazia por onde, nem reivindicar queria. Achava que o justo era o que a gente recebia. Nada de dar passo maior que a perna. E por isso, ele não dava passo algum. Avançar mais do que se pode é abusar da sorte. Se não fosse prevenido desse jeito não estaria hoje, após 40 anos de serviço, gozando da farta aposentadoria de auxiliar administrativo.
Por isso, era estranho da parte dele morrer e não avisar a ninguém.
- Como você pode fazer isso comigo Alípio? Como? – Maria Helena começou a chorar enxugando as lágrimas com o perfex da cozinha.
- Maria Helena meu amor, que absurdo é esse? Tô aqui vivinho da silva. Deve ser algum engano... – tentou consolar ele. Ela olhou para o marido e o tocou como se para confirmar.
No dia seguinte apressaram-se a ir num destes órgãos públicos, que não funcionam, para averiguar o ocorrido. Chegaram cedinho e demoraram horas até serem atendidos. Depois de muito verificar no tal sistema, o servidor público explicou com cara de tédio.
- É seu Alípio, tá aqui: o senhor morreu...
- Mas como? De que? Onde?
- E já tem uma semana...
- Uma semana Alípio? E eu sou a última a saber?
- Mas eu tô aqui, na frente de vocês!
- Sim Seu Alípio! E o documento também. E o sistema não erra essas coisas...
Se diz que morreu é porque morreu... Ou o senhor vai questionar os milhões que foram investidos para poder tornar tudo informatizado e mais garantido para a população... É a segurança que contribuintes idôneos precisam!
- Não, não! Não sou eu que vou questionar isso não... Quem sou eu! Um pobre coitado que não tem onde cair morto... – Disse Alípio tentando ser irônico.
- Mas é melhor o senhor se apressar porque morto o senhor já está...
Maria Helena segurava o choro entre a revolta e a vergonha.
- Ah! Seu Alípio, só me resta avisar que se o senhor não morreu, pode ser acusado de fraude... 15 anos de prisão no mínimo. – E virando-se para Maria Helena completou com um sorriso maroto – E os beneficiários vão junto!
A mulher levantou-se apressadamente puxando Alípio pelo braço.
- Muito obrigado moço! Não vamos tomar mais seu tempo.
Enquanto aguardavam o ônibus, ele reclamava e ela de cara fechada. Ele reparou.
- Que cara é essa Maria Helena?
- Você não podia fazer isso comigo Alípio.
- Mas o que eu fiz minha filha?
- Morrer assim, sem reclamar, sem planejar direito... Isso é sua cara.
- Mas...
- Não sei não Alípio! Não sei mesmo! Esta história esta muito mal contada.
Chegando em casa, logo na porta um burburinho.
O que Alípio temia aconteceu: a notícia se espalhou.
Amigos, parentes e curiosos se amontoavam em frente ao seu portão. Quase nada acontecia naquela rua e uma morte era um grande acontecimento. E um morto do qual se pode se despedir ao vivo era imperdível.
Até um pipoqueiro e um vendedor de cuzcuz tinha na frente.
Enquanto Alípio atravessava a pequena multidão ganhava tapinhas nas costas e cumprimentos sofridos.
- Cara, você vai fazer falta – Disse um.
- Meus sentimentos... – Arriscou outro.
- Vai um cuzcuz como última refeição, patrão? – arriscou o ambulante.
- Me diz aí Alípio, como é o outro lado? – Puxou papo um mais animado.
Alípio com sorriso amarelo seguia em frente rumo a sua casa, a seu lado uma Maria Helena constrangidíssima.
Na sala o genro e a filha o esperavam.
- Papai... Papai, vou morrer de saudades! – disse a filha choramingando.
- Pois é sogrão, e o terreno em Cabo Frio? Como fica? – completou o genro sem interesse.
Maria Helena aos prantos correu para o quarto e se trancou. Alípio foi atrás. Ele dava batidinhas na porta e pedia que ela abrisse. Levou uns dez minutos e a porta se abriu. Toda de preto com direito a véu, Maria Helena surgiu pela porta como uma viúva perfeita.
- Quié-qui-é-isso, Maria Helena?
- Sou viúva Alípio. E vou me portar como tal... E se você realmente se importasse comigo, colocaria seu melhor terno...
Alípio entendeu o recado. Arrastou-se para dentro do quarto fechando a porta atrás de si. Sabia que não tinha o que contestar. Se o governo dizia, os vizinhos e parentes se despediam e até sua mulher já aceitava, não seria ele a criar caso ou ir contra os fatos! Definitivamente não era seu estilo. Logo apareceu elegante, com o terno do batizado do neto. Um conjunto cinza ainda no vinco. Dica do vendedor:
- A cor serve para casamento, batizado, comunhão e até enterro. Nos dias de hoje o que se puder economizar é melhor não é? – Lembrava as palavras do homem da loja.
A filha veio ao seu encontro.
- Meu pai, você está tão... tão... – Desabou a chorar sendo consolada pelo genro.
- Não esquece o terreno seu Alípio, o terreno... – disse piscando o olho.
Foi então que notou que a sala já estava preparada.
No local não havia mais espaço para viva alma. Sem trocadilhos.
Todos de preto contrastavam com as grandes coroas de flores que enfeitavam o ambiente. Ao fundo uma música com ares fúnebres. Um garçom ia e vinha com quitutes frios e refrigerantes quentes nos copinhos de plásticos.
Alípio perguntou para o genro.
- Como vocês prepararam tudo tão rápido?
- Ora seu Alípio, quem tem amigos não morre sozinho! Eu mesmo cuidei de tudo! Olha a qualidade das Coroas de Flores! – Dizia orgulhoso apontando uma onde se lia: “Morto em combate”.
- O que quer dizer isso?
- Pois é! Fizeram um descontão num material que já havia na loja e eu aproveitei! O que vale é a intenção né sogrão? – o quase filho sorria feliz orgulhoso. Lembrou do vendedor de mesmo sorriso e sussurrou baixinho para ele mesmo.
- Nos dias de hoje o que se puder economizar...
E se encaminhou para mesa onde já havia um espaço reservado para o morto, no caso, ele. Pediu licença a um, a outro, se aproximando sem pressa sentou-se sobre o tampo deitando em seguida. Silenciosamente as pessoas organizaram uma fila para cumprimentar a esposa, a filha e o genro sorridente.
- Meus sentimentos...
- Pêsames...
- Ele vai fazer falta...
- Meus sentimentos...
E se repetiam as falas. Ele ali, olhos fixos no teto. Sabia que deveria dar duas mãos ali. Aquela tinta não ia segurar e logo estaria descascando. Mas a mulher teimou.
- Ninguém olha pro teto. – E lá estava ele agora. Olhando.
A mulher se aproximou.
- O que você está fazendo?
- Ué, to aqui quietinho. Mortinho...
- De olhos abertos Alípio? Olha o mal-estar que está ficando isso aqui. Você está deixando as pessoas constrangidas...
Ele olhou em volta e acho que ninguém dava atenção a isso.
A bebida quente e os salgados frios pareciam mais interessantes. Mas pra que perturbar a patroa?
- Tá bom, ta bom, eu fecho os olhos... – E cerrou os olhos. Foi quando de sua barriga um ronco imenso se ouviu. Sua esposa nem tinha se afastado e já voltou a carga.
- Alípio, por favor. O que é isso agora?
- É que não almocei nada lindinha... Será que não posso comer uma empadinha?!
- O que vão dizer da gente Alípio... Morto comendo empada?
- Uma só vidinha...
Ela fez charminho e depois fez que sim com a cabeça.
- Uma só Alípio! E depois morra por favor.
- Ta bom meu amor! Te amo.
Um garçom se aproximou e Alípio rapidamente abocanhou duas empadas e alguns copinhos de refrigerante.
E logo ocupou sua posição de defunto.
Ali, deitado, olhos cerrados não era muito diferente do seu dia-a-dia, pensou.
Na sua cabeça começou a lembrar dos seus filmes prediletos que a TV sempre repetia. Das notícias dos jornais sempre as mesmas. Pensou na sua vida, eterna reprise de dias. Não era isso a morte? Então era só se acostumar a idéia, como sempre se acostuma a tudo.
- Nossa! Ele está tão corado...
- Parece até que vai sair andando...
- Nem aparenta a idade que tinha...
Ele ouvia a todas as observações com um sorriso sem exageros nos lábios.
- Tive sorte de me cuidar e morrer bem, inteiro... – Pensou. E depois lembrou da empadinha e sentiu lá longe que a fome se avizinhava mais uma vez.
Mas resolveu não comer mais nada para não encabular os vizinhos nem a família.
Afinal, em poucas horas estaria descansando em sua cova. E a fome só iria atrapalhar seu descanso eterno.