Bonecas


Tarde.

Ela e a boneca frente a frente. Só o vidro da vitrine separa as duas.

Tem quase a mesma altura. Não se sabe por ela ser mirrada demais para os seus seis anos, ou pela boneca ser gigante. Pelo menos pra ela.

Do lado de cá do vidro, uma figura magra, vestido largo. Um dos muitos que passou pelas outras irmãs antes de chegar nela. Canelas finas e sempre russas, cabelos duros, saltando os fios amarelos queimados de sol e quebrando toda aquela finura, uma barriga proeminente de verme e pirão de água. Nem um pingo de saúde brotava dali. O que ao longe, do outro lado da vitrine poderia parecer reflexo, era na verdade um espelho de contrastes. Um brinquedo, bonito, loiro e sorridente ao extremo.

Mas ela ganhava no olhar. Enquanto a boneca tinha um olhar morto e vidrado o dela era explosivo de um verde reluzente, vivo, esperto, incompreensível.

A mãe tinha que vir pelo menos três vezes por semana à cidade e ela a acompanhava. Trazia trouxas de roupas lavadas no ribeirão perto de casa. Querendo ou não, seguia naquela viagem longa e cansativa, um longo tempo a pé, depois o ônibus quente e, às vezes elas ficavam ali por horas sem comer ou beber nada, esperando a condução pra voltar. O cheirinho da roupa lavada a confortava.

E pra driblar o tempo e a fome, ela sempre que podia, transformava o próximo minuto em brincadeira e assim, as horas passavam mais rápidas.

Já havia algum tempo em que ela torcia para aquela hora chegar e poder ficar ali brincando com a boneca mentalmente.

- La-gri-mais-di-ver-da-di... – Leu a outra irmã para ela certa vez. Era o escrito lá na caixa, que envolvia o brinquedo, afirmando que o brinquedo chorava de forma real. Até nisso eram diferentes. E a Boneca conseguia o que ela não conseguia mais.

Noite.

Ela deitada olhando o teto. Uma das melhores brincadeiras era essa, com as sombras que o lampião projetava por todo amianto. E assim ela fazia figuras, criava bichinhos e coisas que a divertiam.

Na casa de um cômodo só o quarto era sala e vice-versa.

Era só chegar à mesa da janta para lá, varrer um pouco a areia do chão e fazer a cama. Na esteira dormia agora somente ela ao lado da mãe. O pai sempre chegava mais tarde, quando chegava.

Houve tempo em que era ela, as duas irmãs e os pais.

A mais velha um dia juntou o que podia e ganhou mundo. Vivia brigando com a mãe a qual chamava de nomes feios. Culpava a mãe por algo que ela não entendia. E a cada nova coça, muitas lágrimas e a promessa de sumir. Até que um dia o fez. A outra também se foi. Um tio chegou com algumas notas, entregou ao pai e a levou para passear, segundo a mãe. A irmã chorou muito, dizia que não queria ir. Mas foi mesmo assim com o tio arrastando-a pelo braço. Aí foi a mãe que chorou um bocado. Depois parou e ficou zangada. Por tudo.

Insistir em perguntar o porquê, era certeza de um bom tabefe. Ela, pra não incomodar mais ninguém, resolveu não chorar mais.

Já tinha lágrima demais no chão daquela casa. Daria pra fazer um lago de água salgada.

Uma das sombras era a imagem da irmã mais velha dando banho nela e cantando cantigas. Ela adorava aquilo. Ficava com cheiro bom e o mundo mais leve.

A porta se abriu e o lampião tremulou, fazendo com que a irmã sumisse mais uma vez. Se não fosse a valentia e o querosene, ele apagava. Mas não apagou.

Era o Pai chegando com grande estardalhaço. Xingando, derrubando coisas, maldizendo o mundo. Pela silhueta no teto, viu quando ele se despiu e se aproximou da esteira, dando arrotos que fizeram que o cheiro da manguaça empestiasse o local. Murmurou algo para a mãe que abriu espaço entre as duas. Adorava o cheiro da mãe. Aquele do pai, não. Porque ela se afastava?

Ele deitou entre elas e virou de costas para a mulher como se não existisse.

Levantou a fina coberta e se encostou-se murmurando com a voz trêmula e pastosa:

- Cadê a bonequinha do papai? – E começou a brincar com ela de coisas estranhas. Já tinha visto aquelas brincadeiras antes, com as outras irmãs, mas com ela era a primeira vez. Ela desejou que aquilo não demorasse muito, fechou os olhos e fingiu dormir.

A irmã havia deixado este truque como herança.

Manhã

Ela sabia que devia ser começo de mês.

Quando tinha manteiga para passar no aipim no café da manhã, o pai tinha ganho algum trocado.

Era pra ser um dia feliz.

Mordia o seu naco de mandioca cozida e não entendia porque sua mãe a olhava atravessada. Nem banho nela tinha dado.

Ela sentia dores e um corrimento descia por sua perna fina. Mas não falou nada.

Resolveu ficar num canto no quintal, torcendo pela hora de brincar de novo com sua boneca.

Tarde

Enquanto sacudia no ônibus, ela lembrava da vez que um moço lhe deu um sacolé. Este dia sim a viagem tinha sido deliciosa.

Enquanto chupava o saquinho, o líquido vermelho com odor de groselha, corria por seu queixo, pescoço e coloria seu vestido. Tudo era doce e fresco.

Desceram e caminharam um par de horas carregando trouxas. Ela queria dizer para a mãe que estava pesado, que o cheiro do sabão em pedra, com o cheiro da cachaça em seu corpo a estava deixando tonta, com ânsias... O medo sempre cala. O silêncio estranho durante toda a viagem deveria significar algo.

Foram a duas ou três casas, falaram com muitas moças, entregaram roupas, pegaram roupas, entregaram roupas, pegaram roupas, entregaram roupas e já voltavam ao ponto de ônibus.

A única novidade foi um suco de acerola e limão que havia tomado numa das casas. Aquela tia era sempre a mais simpática, um olhar que era um abraço e o cheiro de alfazema.

A casa dela era linda, branquinha e com chão de verdade. Ela às vezes imaginava morar ali, ter um quarto só dela, uma cama com colchão para dormir abraçada com sua boneca.

No quintal faria bolinhos de barro e margaridas para as duas brincarem de casinha. Teria uma coleção de roupinhas, uma para cada dia da semana.

As duas se vestiriam iguais até. Todo mundo pensaria que eram irmãs.

Sonhava com isso tudo enquanto tentava acompanhar o passo da mãe, alguns metros mais à frente. Ao longe avista sua lojinha. A ansiedade é grande e em momentos sente que seu coração vai saltar e sair correndo a sua frente.

A mãe parou no ponto e deixou a trouxa de roupas cair da cabeça para o chão. Fez isso há tantos anos que sua destreza em não derrubar qualquer peça é impressionante. Ela pousou as sacolinhas que carregava ao lado e caminhou até a vitrine com o rosto trincado. Do outro lado, ao invés de ver seu reflexo perfeito, via agora um trenzinho. Olhou em volta para se certificar se era a mesma loja, a mesma praça, o mesmo mundo. Era.

Sua boneca havia ido embora. Assim como a sua irmã mais velha e depois a outra. Assim como as tardes alegres, assim como os bolinhos de barro e tantas fantasias.

Foi quando chegou mais de perto e viu ali um rosto de olhos vidrados que choravam.

Olhos sem vida, tristes, distantes. Alguma coisa havia quebrado em sua boneca.

Ela pensou até em sorrir ao rever o brinquedo.

Mas não era nada daquilo. Era apenas o seu reflexo e lágrimas de verdade.

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