Mentirinha



- Tem mulher que não é bonita, mas finge direitinho...
Guto disse enquanto bebericava o chope. Ele tinha por hábito beber pequenos goles, fazendo assim que a bebida rendesse. Porém, antes da metade, pedia para trocar pois o chope já estava quente.
Afonso, não. 
Tomava longo goles, rápidos e mal saboreava a breja, pois já pensava no próxima.
Os dois ali, largados num bar no centro do Rio, observavam como dois leões velhos numa savana o ir e vir das moças saindo do trabalho. Um não entendia como o outro podia ter a profissão que tinha, mas mesmo assim, eram amigos fazia tempo e isso não cabia tinha pesava mais no assunto.
Tijucanos convictos, orgulhosos e cada um dono de suas verdades absolutas.
Vez por outra uma bunda merecia um comentário. Mas desta vez Guto havia sido profundo demais.
- Repete... – Disse Afonso fingindo desinteresse.
Guto deu seu gole de pardal e vaticinou agora num outro tom.
- Tem mulher que não é bonita... Mas finge direitinho!
- Desenvolve. – Desafiou Afonso.
- Olha só aquela morena. Na boa? É feia.
- Bonita, não é...
- Pois é. Feinha, sem graça... Mas olha o vestidinho, o cabelo soltinho, aqueles peitinhos pêra flutuantes... O jeito de quem saiu do banho as... – Olha para o relógio do celular - ... 17:38 da tarde. Eu namoro.
Afonso abriu aquele sorriso irresistível que só ele tem.
- Ligo pra sua mulher e aviso que tá tudo acabado?
- Tô falando sério. Pode ligar. Namoro, passeio no shopping, faço planos... Olha ela...
Os dois olhavam. Muito.
- Vai pegar um busão pra Campo Grande...
- Longe, né? Suspende a ligação.
Os dois riram. E continuaram olhando o vai e vem. Afonso olhou para o relógio um par de veze e Guto reparou. Um bebericando enquanto o outro dando longos goles.
- Aquela ali é uma mentirinha.
- Mentirinha? Evolua... Evolua.... – Agora era Guto que se mostrava curioso.
- Ali, tronco comprido, perna curta. Mentira tem perna curta.
- Não é anã por sorte...
- Rapaz, já peguei umas mentiras por ai... Anã, nunca.
Afonso ensaiou um olhar perdido de frustração mas acabou voltando a olhar para o relógio.
- Tá perto da hora de dar o rabo? – Guto enciumado.
- Ô cara. Que grosseria. Sorte sua que você que tá pagando ou eu ia sentar em outra mesa...
- Caralho, olha aquilo.
Vinha ela, negra, poderosa, acima do bem e do mal, e longe deles, pobres mortais. Falava ao celular a caminhava como se cavalgasse o próprio corpo. Saída da ginástica, calça legging e o resto não importava. Poderosa.
- Gutinho, me diz que morri... Olha a orgulhosa. – Afonso arfava.
- Pra que tanto orgulho se o destino de todos é a morte? – Guto buscava o ar.
- Não parece uma pasta de dentes novinha? Toda apertadinha... Olha a calça. Pra que essa violência?
Eles nem falavam para ela ouvir. Também ela não ouviria. Já tinha ouvido de tudo.
Afonso fechou os olhos apertados. Guto sorriu divertido.
- Que porra é essa?
- Pra não perder a imagem... Pronto – Abriu sorridente – Agora como minha mulher fácil por mais umas duas semanas. Repertório não vai faltar.
Afonso ergueu sua tulipa em direção a musa e gritou.
- Muito obrigado! Muito obrigado!
Mal pousou o copo olhou o relógio mais uma vez. Guto parou a risada no meio incomodado com aquela obssessão do amigo.
- Para com esta porra, Afonso!
- É o Adão que não chega com meus 300 reais...
- Falei para não emprestar.
- Mas ele me falou que era só uma semana... Pô Guto, pra escola das crianças!
- Isso é o que ele disse... O Adão tem sempre uma história, você sabe.
- Mas é amigo...
- E o maior Forrest Gump, bobeou, lá vem história. Porque perdi no taxi, porque perdi na bolsa, porque tive que vender um rim...
- Mas o cara tá fodido.
- Agora quem tá é você.
- Estaria mais se estivesse pagando o chope... Ô amigão, traz mais um!
- E troca o meu, que esta porra tá quente.
Guto sempre foi mais prático. Afonso explosivo e apaixonado.
Voltaram a savanar. Mais alguns chopes chegaram e foram. Copos furados reclamavam ao garçom.
Uma gordinha vem passando dentro de uma ousada minisaia.
- Olha aquilo ali meu Gutinho. Olha a gordelícia!
- Caraca, é muita bunda pra uma pessoa só.
Guto se pôs de pé.
- Sua egoísta! E-GO-ÍS-TAAA!
Afonso faz com que o amigo se sente entre gargalhadas. Ela nem ouviu.
- Bunda de cagar em tanque!
Até Guto se assustou com a baixaria que disse.
- Lindo! Isso é Drummond, não?
Os dois riam como garotos.
- Divide isso ai! Se fosse em Cuba, tava fodida!
- Se fosse lá em casa também! Liga pra minha mulher! Liga!
Mais risadas. Afonso olhou para o relógio.
- Vou te encher de porrada!
- O Adão! O Adão!
Foi quando tocou telefone. Afonso encarou o celular com desconfiança.
- Não morre tão cedo... Quer dizer, vai vir com historinha e vou matar este filho-da-puta!
- Atende logo esta porra!
- Alô... Adão? Cade você porr... Como? Quem? Calma, cara... Tá bom... Calma irmão...
Guto interrompeu seu golinho no meio.
- Caralho, de filho da puta pra irmão?
- Tá bom, Adão... O rapaz, que isso. Beijo, fica com Deus!
Afonso desligou e ficou olhando o celular por um instante. Guto não se conteve e perguntou sorrindo.
- E aí? Quem morreu?
Afonso olhou meio abobado para o amigo.
- A mãe dele...
Guto fechou o sorriso.
- Tu acabou de chamar a mulher de puta!
Afonso olhou meio ofendido para Guto.
- Obrigado pela lembrança.
- Desculpa... Mas foi o que me veio à cabeça.
Guto, como se para compensar, sinalizou ao garçom mais dois.
- Vamos beber a morta!
Guto tentava recuperar o clima. Mas não rolou.
- Morta não... Dona Adalgisa.
Afonso era mais amigo de Adão que Guto. Se conheceram antes, jogando bola no perto do ponto final do 422 no Grajaú. Adão dizia morar por lá, mas Afonso sabia que ele morava no Andaraí. Adão dizia que a conta de luz vinha como Grajaú, portanto... Mesmo que todas as outras viessem como Andaraí.
Ainda no científico, Adão engravidou a namorada, que virou esposa e o neném virou filho. Adão foi o primeiro a formar família e nem teve chances de faculdade. Também não fez muita força.
Guto já havia chegado nesta fase da vida de Afonso.
Os dois iam e vinham a pé da UERJ até a Conde de Bonfim onde eram vizinhos. 
Mas, muitas vezes em amizade, antiguidade é posto. Guto sabia disso.
- Fez muito Nescau pra mim... Levava a gente a praia lá na Ilha do Governador... Lá no Bananal.
- Que merda de praia, hein? – Guto não podia perder a piada.
- Ah, não sacaneia cara.
Guto resolveu guardar silencio. Pelo tom do amigo o sentimento era forte.
Ficaram ali bebendo em silêncio. Nem comentavam mais sobre o mulherio.
Afonso levantou de repente e começou a catar suas coisas. Guto surpreso.
- Vai aonde?
- Ao velório! Lá na ilha...
Guto se sentiu na obrigação de ir junto.
Um pequeno engarrafamento a bordo do Corsa de Guto e os atalhos que só os verdadeiros tijucanos conhecem chegaram em pouco tempo ao local.
Já no portão, encontraram um Adão inconsolável. Abraços, afagos e adentraram o velório.
A casa cheia, choro, flores e D. Adalgisa ali deitada sobre a mesa observada por todos. Afonso deu um beijo em seu rosto, falou algo em seu ouvido e depois se encostou num canto sem tirar os olhos da morta.
Guto se misturou aos familiares que assistiam ao Jornal Nacional em outra sala e por ali ficou matando tempo e comentando as noticias. Vez por outra checava Afonso no outro cômodo.
O começo da novela foi a senha para ele quebrar a vigilia de Afonso.
A fome se avizinhava, a mulher não ia acreditar naquela história de morte da mãe do amigo do amigo... Tava legal daquele clima de carpideira. Ele se aproximou calmamente e encontrou o amigo contrito, olhar fixo.
- Cara, Afonso, tua emoção me comove...
Afonso pareceu despertar de um transe.
- Tu sabe que o Adão adora inventar uma história... Tô aqui de olho... Vigiando o mínimo movimento. Se a velha se mexer, vou lá catar meus trezentos reais com ele rapidinho.
De repente Guto apertou as sobrancelhas e olhou para D. Adalgisa. Se colocou ao lado de Afonso em vigília. 
Os dois sabiam que do Adão podia-se esperar de tudo. 

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Foto - Savana da Ouvidor, centro do Rio.
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Casa de Malucos



Esse branco todo sempre me deixa agoniado. 
Tudo bem que dizem ser necessário em ambientes hospitalares, mas isso aqui não é bem um hospital. É só uma casa de malucos. 
E eu me prometi não chamar assim.
Minha tia pediu tanto.
Mas o outro tá aqui, entregue a morte e eu tenho que vir e fingir que visito...
Minha tia pediu muito. 

Eu, particularmente, não gostaria de morrer assim.
Depositado, largado, encostado assim, num quarto, numa cama, sem ter ao menos memórias para lembrar das coisas boas que vivi. 

Das comidas que saboreei, das mulheres que forniquei, dos porres que tomei. 
No fundo mesmo não gostaria de morrer. Mas se for pra escolher seria dormindo. 
Tá bom, foda-se que é clichê, mas é como eu gostaria. Respeita. 
E tô aqui sentado pensando longe e  vi quando ela veio caminhando, lá do fundo do corredor, aquele olhar burocrático e mesmo naquelas roupas frias, do mesmo tom de tudo aqui, dava pra ver que era gostosa. 
Não como estas modelos de lingerie, magras que dão pena, mas mulher de verdade, daquelas que aguenta um cara ali sobre elas, sem pedir água. 
Puta sede, viu? E aqui, mesmo com a grana que se paga, não se oferece uma água, um café.
Porra nenhuma. Muquifo dos infernos.  
Com certeza, lá onde mora o capeta é assim. Tudo branco, paz pra caralho e sem água, nem café. 
No fundo mesmo pelo preço deveriam oferecer um café da manhã completo com direito a um boquete no final. 
E ela veio chegando, sabia que eu a observava e fingia que não se dava conta. 
Chegou bem perto e pude sentir seu cheiro. Aquela coisa de perfume doce, barato, que quando você entra no ônibus cheio é um inferno. 
Casa de malucos. Eu prometi... 
Ela disse que eu poderia entrar, pra tomar cuidado que hoje ele está um pouco mais agitado, que parece ter tido uma pequena recuperação. Bela bosta. 
Viver numa cadeira de roda, 40% de visão num olho, o outro tomado pela catarata, sem movimentos da cintura pra baixo, cheio de sonda e sem poder mastigar porra nenhuma... 
Como assim recuperação? Estava piscando sozinho? 
Ri por dentro da minha piada e me senti culpado de não sentir culpa nenhuma. 
Falando francamente? Se eu passar por isso me dá um tiro na cabeça. 
Eu falei que queria morrer dormindo , mas por favor, se for pra ficar assim me acerta a têmpora. Bang e pronto. Quando abrir o olho tô lá falando com São Pedro, tudo branquinho... Se bem que. Se for como aqui, essa coisa sem vida, prefiro o tal do inferno. 
Enquanto caminho olho para a bunda a minha frente, sobre a calça branca da pra ver a pequena calcinha. Branca. Se fosse séria mesmo, não usava uma calcinha dessa. 
Ela sabe que os machos olham, ela colocou pra provocar, vadia. Todas. 
Chegamos a porta e ela repete as recomendações. Não pode isso, não pode aquilo, não pode, não pode, não fode! Puta que pariu piranha, não sou burro não. 
Sorrio de forma franca e entro. 
Me aproximo da cama e os olhos azuis dele me encaram. Encaram porra nenhuma que ali não se vê nada. Mas ele tenta. 
Da boca escorre uma baba densa, que desce pelo pijama e faz uma poça no travesseiro. 
Ele tenta sorrir ou sei lá que porra é essa que ele tenta fazer com a boca. 
- Marcílio? 
Ele sempre gostou mais do meu irmão. Era o mais calmo. Quando minha mãe deixou a gente com ele, ficou claro a preferencia. Eu era o cão chupando manga e meu irmão bom moço. 
Ai, depois me perguntam como pude não ir ao enterro do meu próprio irmão. Eu acho que ele não deu reparo. Com certeza vou pro inferno. 
No fundo prefiro, não sei se disse. 
- Não, sou eu... Mauro. Lembra de mim, tio?
Ele não responde. Filho da puta. Apenas olha para o lado na direção da janela. 
É como se eu não estivesse mais lá. Filho da puta. 
Quando eu era mais novo era a Televisão. Agora essa porra de janela. 
Dali só uma árvore, um sol filho da puta e um vasinho com flores de plástico.
E é para lá que ele prefere olhar. 
Não dá pra me arrepender do que vou fazer. Vim aqui pra isso. 
Levei quase uma semana decidindo. 
Mentira. 
Decidi rápido, só levei uma semana pra vir aqui. Não teve muito tempo de reflexão não. 
Melhor isso que ficar aqui nessa casa de malucos. Foda-se tia.  
Pego o travesseiro e ali mesmo tampo seu rosto. Sei que vou ter ainda uns 30 minutos com ele. Tenho tempo de sobra e aqui ninguém entra. 
A merda é essa. Como ele não se move, não sei se já terminei ou não. 
Não é justo você se emputecer comigo não. Tô matando alguém que já tá praticamente morto. Então, e daí? 
E não é que o merda do meu Tio se move? Nada que não posso controlar, mas caralho, se é pra morrer, morre na moral. 
Sinto que ele se debate com a força de uma menina de 5 anos. Que merda isso. 
Se algum dia alguém me matar que seja com um tiro. Na cabeça. BANG! Pronto. 
Ele para. Retiro o travesseiro e a expressão dele guarda um horror que eu nunca vi na vida. 
Ajeito a cabeça dele outra vez. Pronto. Parece como sempre. Ai, quando eu sair, digo pra ela que li o livro de sempre, contei as histórias de sempre e que ele adormeceu como sempre. 
Esta meia hora toda semana estava me tirando do sério. 
Matar alguém não é algo que valha de fato registro. No fundo nem senti assim. To te falando. 
E com a grana que vou receber, na boa? Você faria o mesmo. 
Olho para o meu tio, olhos abertos. Fico na direção entre o olhar dele e a janela.
Pronto, agora ele me vê. 
Sento na cadeira e aguardo os 30 minutos passarem fazendo planos. Viajar, comer mulheres, comer bem pra caralho, beber...  É preciso ter boas memórias pra poder lembrar. 
É o que eu sempre digo. 
Não quero morrer assim, como meu tio não. Jeito escroto de morrer. 
Antes de sair fecho os olhos de meu tio, enxugo seus lábios e ajeito seu travesseiro. Parace confortável.
Não quero morrer assim não... 

Quero viver bem a vida enquanto essa porra desse tumor não toma conta de tudo na minha cabeça.  
Casa de malucos.... Tomar no cu. 

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