Casa de Malucos



Esse branco todo sempre me deixa agoniado. 
Tudo bem que dizem ser necessário em ambientes hospitalares, mas isso aqui não é bem um hospital. É só uma casa de malucos. 
E eu me prometi não chamar assim.
Minha tia pediu tanto.
Mas o outro tá aqui, entregue a morte e eu tenho que vir e fingir que visito...
Minha tia pediu muito. 

Eu, particularmente, não gostaria de morrer assim.
Depositado, largado, encostado assim, num quarto, numa cama, sem ter ao menos memórias para lembrar das coisas boas que vivi. 

Das comidas que saboreei, das mulheres que forniquei, dos porres que tomei. 
No fundo mesmo não gostaria de morrer. Mas se for pra escolher seria dormindo. 
Tá bom, foda-se que é clichê, mas é como eu gostaria. Respeita. 
E tô aqui sentado pensando longe e  vi quando ela veio caminhando, lá do fundo do corredor, aquele olhar burocrático e mesmo naquelas roupas frias, do mesmo tom de tudo aqui, dava pra ver que era gostosa. 
Não como estas modelos de lingerie, magras que dão pena, mas mulher de verdade, daquelas que aguenta um cara ali sobre elas, sem pedir água. 
Puta sede, viu? E aqui, mesmo com a grana que se paga, não se oferece uma água, um café.
Porra nenhuma. Muquifo dos infernos.  
Com certeza, lá onde mora o capeta é assim. Tudo branco, paz pra caralho e sem água, nem café. 
No fundo mesmo pelo preço deveriam oferecer um café da manhã completo com direito a um boquete no final. 
E ela veio chegando, sabia que eu a observava e fingia que não se dava conta. 
Chegou bem perto e pude sentir seu cheiro. Aquela coisa de perfume doce, barato, que quando você entra no ônibus cheio é um inferno. 
Casa de malucos. Eu prometi... 
Ela disse que eu poderia entrar, pra tomar cuidado que hoje ele está um pouco mais agitado, que parece ter tido uma pequena recuperação. Bela bosta. 
Viver numa cadeira de roda, 40% de visão num olho, o outro tomado pela catarata, sem movimentos da cintura pra baixo, cheio de sonda e sem poder mastigar porra nenhuma... 
Como assim recuperação? Estava piscando sozinho? 
Ri por dentro da minha piada e me senti culpado de não sentir culpa nenhuma. 
Falando francamente? Se eu passar por isso me dá um tiro na cabeça. 
Eu falei que queria morrer dormindo , mas por favor, se for pra ficar assim me acerta a têmpora. Bang e pronto. Quando abrir o olho tô lá falando com São Pedro, tudo branquinho... Se bem que. Se for como aqui, essa coisa sem vida, prefiro o tal do inferno. 
Enquanto caminho olho para a bunda a minha frente, sobre a calça branca da pra ver a pequena calcinha. Branca. Se fosse séria mesmo, não usava uma calcinha dessa. 
Ela sabe que os machos olham, ela colocou pra provocar, vadia. Todas. 
Chegamos a porta e ela repete as recomendações. Não pode isso, não pode aquilo, não pode, não pode, não fode! Puta que pariu piranha, não sou burro não. 
Sorrio de forma franca e entro. 
Me aproximo da cama e os olhos azuis dele me encaram. Encaram porra nenhuma que ali não se vê nada. Mas ele tenta. 
Da boca escorre uma baba densa, que desce pelo pijama e faz uma poça no travesseiro. 
Ele tenta sorrir ou sei lá que porra é essa que ele tenta fazer com a boca. 
- Marcílio? 
Ele sempre gostou mais do meu irmão. Era o mais calmo. Quando minha mãe deixou a gente com ele, ficou claro a preferencia. Eu era o cão chupando manga e meu irmão bom moço. 
Ai, depois me perguntam como pude não ir ao enterro do meu próprio irmão. Eu acho que ele não deu reparo. Com certeza vou pro inferno. 
No fundo prefiro, não sei se disse. 
- Não, sou eu... Mauro. Lembra de mim, tio?
Ele não responde. Filho da puta. Apenas olha para o lado na direção da janela. 
É como se eu não estivesse mais lá. Filho da puta. 
Quando eu era mais novo era a Televisão. Agora essa porra de janela. 
Dali só uma árvore, um sol filho da puta e um vasinho com flores de plástico.
E é para lá que ele prefere olhar. 
Não dá pra me arrepender do que vou fazer. Vim aqui pra isso. 
Levei quase uma semana decidindo. 
Mentira. 
Decidi rápido, só levei uma semana pra vir aqui. Não teve muito tempo de reflexão não. 
Melhor isso que ficar aqui nessa casa de malucos. Foda-se tia.  
Pego o travesseiro e ali mesmo tampo seu rosto. Sei que vou ter ainda uns 30 minutos com ele. Tenho tempo de sobra e aqui ninguém entra. 
A merda é essa. Como ele não se move, não sei se já terminei ou não. 
Não é justo você se emputecer comigo não. Tô matando alguém que já tá praticamente morto. Então, e daí? 
E não é que o merda do meu Tio se move? Nada que não posso controlar, mas caralho, se é pra morrer, morre na moral. 
Sinto que ele se debate com a força de uma menina de 5 anos. Que merda isso. 
Se algum dia alguém me matar que seja com um tiro. Na cabeça. BANG! Pronto. 
Ele para. Retiro o travesseiro e a expressão dele guarda um horror que eu nunca vi na vida. 
Ajeito a cabeça dele outra vez. Pronto. Parece como sempre. Ai, quando eu sair, digo pra ela que li o livro de sempre, contei as histórias de sempre e que ele adormeceu como sempre. 
Esta meia hora toda semana estava me tirando do sério. 
Matar alguém não é algo que valha de fato registro. No fundo nem senti assim. To te falando. 
E com a grana que vou receber, na boa? Você faria o mesmo. 
Olho para o meu tio, olhos abertos. Fico na direção entre o olhar dele e a janela.
Pronto, agora ele me vê. 
Sento na cadeira e aguardo os 30 minutos passarem fazendo planos. Viajar, comer mulheres, comer bem pra caralho, beber...  É preciso ter boas memórias pra poder lembrar. 
É o que eu sempre digo. 
Não quero morrer assim, como meu tio não. Jeito escroto de morrer. 
Antes de sair fecho os olhos de meu tio, enxugo seus lábios e ajeito seu travesseiro. Parace confortável.
Não quero morrer assim não... 

Quero viver bem a vida enquanto essa porra desse tumor não toma conta de tudo na minha cabeça.  
Casa de malucos.... Tomar no cu. 

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