Quando Ela Perguntou a Ele se estava caindo


Ele caiu.
Sentiu claramente o corpo flutuar no ar e despencar para baixo.
Achava que tinha asas, mas não.
Caía.
Não havia janela, penhasco, escada, ponte de onde partiu, ele apenas caiu.
Uma queda livre onde apenas o que o segurava eram seus pensamentos.
Tentou se agarrar a tudo. Ao beiral da janela, a beirada do precipício, a corda que pendia, as tranças da mulher, as suas lembranças, esperanças, amores perdidos, mentiras, sonhos... Nada o segurava e ele apenas caía.
Um corpo feito de queda.
Às vezes rápido, rasgando o céu, deixando aquelas trilhas brancas e geladas dos aviões no azul.
Outras vezes lentamente, como o sofrimento prolongado de um vilão morrendo antes dos créditos.
Pensou que talvez que fosse um astronauta com amnésia, flutuando livre entre as estrelas.
Ou talvez estivesse nascendo após dias preso num útero.
Lembrou de sua labirintite, de não ter medo de altura, do Coiote, do Bip-bip.
E se não fosse mais gente? Fosse chuva. Uma gota que busca apenas existir em grupo, fazendo o molhado.
- E se isso não der em lugar nenhum? – Murmurou.
Toda queda tem seu fim. Ou ao menos sua finalidade.
O fundo do poço, o fim do abismo, chegar mais rápido ou pelo menos cair em si. E ele caindo.
Sentiu seu corpo girar e o vento forte o pegou de frente deformando seu rosto.
Lembrou que talvez estivesse de pára-quedas e tateou suas costas. Nada. No fundo teve aquela esperança de ter asas.
Pensou na morte. Mas não havia filme passando em frente aos seus olhos. Ou talvez sua vida não rendesse fotogramas suficientes que valesse algum registro.
Olhou para baixo apertando os olhos e enxergou uma luz tímida. A tal luz no fim de túnel.
Talvez lá embaixo para proteger seu corpo houvesse uma rede de proteção, uma tina de água, um colchão, uma palavra amiga.
Talvez não houvesse nada e ele não parasse de cair.
Ele sabia que a queda era o meio e não o fim.
Caiu mais tranqüilo.







Mal sabia ele, que lá estava ela, em algum lugar, de braços abertos esperando ele chegar.
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Até Que a Morte nos Separe.

Publicada originariamente em 20 de Fevereiro de 2009


E ele beijou-a nos lábios. Primeiro suavemente, depois cheio de volúpia, gana, vontade mesmo. Ela ali, completamente entregue.
Aquilo era um sorriso? Sim, ele tinha certeza que era um sorriso.
Tinha pouco tempo mas não tinha pressa nenhuma. Queria namorar um pouco, sentir os cheiros daqueles cabelos sedosos que pareciam vindos diretos de uma propaganda de shampoo até suas mãos. Podia sentir a textura de cada fio, mesmo usando aquelas grossas luvas. Cabelo grande, liso, macio...
Se soubesse do encontro, teria tomado um banho, usado aquela colônia nova que comprou na revistinha da colega de faxina. Poria uma camisa mais da moda, sapatos. Sapatos sempre impressionam as mulheres, sei lá. Ela merecia.
Mas quase sempre estes encontros aconteciam assim, sem se esperar. Tudo em cima da hora.
Ele ainda com sua roupa de trabalho, aquele macacão horrendo, aquelas luvas amarelas pesadas, enquanto apenas um lençol cobria o corpo dela. Foi desembrulhando cuidadosamente, com os olhos gordos de criança que ganha um presente maior que esperava.
Sabia que se as coisas fossem diferentes poderia até ser correspondido como queria.
Talvez algumas pessoas estranhassem a diferença de idade, ele já carregava mais de trinta e cinco anos de frustrações, broncas e cabeça baixa. Até por isso, quem lhe conhecia ficava surpreso ao entender que ele não tinha os cinqüenta e poucos que usava em sua vida todos os dias.
Já ela não. Tinha o frescor e o olhar distante, daqueles que com vinte e poucos anos acham que o mundo é um umbigo. Bonita, aspecto saudável, rosto lindo e bem desenhado.
Não. Ele olhava para ela e via claramente que agora que os anos nunca seriam empecilho para os dois. Não daquele jeito. Não naquela madrugada. Nunca mais.
Se a realidade fosse outra e o acaso ajudasse, ele sabia que poderia conquistá-la realmente.
E a levaria ao cinema, ao parque, ao zoológico. Não. Zoológico fede. Ele já havia trabalhado em um e todo mundo suja tudo, cheiro de cocô de bicho para tudo quanto é canto. Não. Ela merecia mais.
Um restaurante bacana, um rodízio de pizza de vários sabores, quem sabe?
Tinha um ótimo na perto da casa dele. Ele pagaria.
Mas dava pra ver de cara que ela, com aquele ar de Patricinha, não era muito chegada a subúrbios. Tampouco era chegada a massas. A barriguinha durinha e bem dividida, dava sinais claros de muito tempo de malhação e cuidados.
O dinheiro traz isso.
A pele macia, de uma branquice imensa, guardava lá longe uma marquinha de biquíni de uma praia que com certeza ele não freqüentaria. No máximo para limpar. Rico suja tudo e nem liga para o filho da puta que está ali limpando. Só falta jogar lixo na gente.
Voltou a ela.
Os seios duros, rijos, de bicos rosas, apontavam para cima com a certeza da juventude. Ele passou a mão sobre eles e sentiu claramente que ficavam duros. Tinha certeza absoluta. Ali era tudo dele.
“São em momentos como estes que somos todos iguais, não é mesmo?” Diria o seu amigo vigia. “Ou cagando, ou morrendo, ou trepando... Todo mundo é igual.”
Disse o vigia certa vez enquanto jantavam suas quentinhas no salão maior.
O amigo tinha sorte de ser casado. Sempre trazia uma comida legal, uma carne assada, um frango ensopado, batata-frita. Ele adorava batata-frita. Na latinha dele sempre macarrão. Era o que ele sabia fazer, o que comia e o que sofria para colocar pra fora horas depois. Por que ele não podia ter batata frita na sua marmita? Ela não tem cara de quem vai pra cozinha!
Beijou a de novo agora com raiva, posse e para provar que podia tudo, mordeu seu lábio.
- Poxa! Desculpe! machucou?
Ela nada disse. Ficou ali imóvel fitando o teto distante dele.
Aquilo o deixava doido. O sangue subiu a cabeça e ele pulou as preliminares. Tirou o macacão, cueca e ficou nu sobre ela. Vestia apenas as luvas, sua mania.
- Olha como você me deixa... – Adorava a sensação de tocar em si mesmo com aquela aspereza nas mãos.
A penetrou com força e sentiu o corpo sobre ele tremer com sua vontade. Começou a ir e vir e sentiu que ela balançava de um lado para o outro como se não tivesse vontade própria.
Aquilo o deixava doido. Não resistiu e lascou-lhe um tapa na cara. Ela não reagiu. Outro. Mais outro e sentiu o alivio vir da sua cabeça e sair pelas suas partes. Havia acabado. Com ele aquilo era sempre rápido. As namoradas reclamavam, a ex-esposa também. Por isso apanhavam, depois diziam que não entendiam o porquê. Lembrou de todas as outras e saiu de cima dela ainda com raiva.
- Vocês são tudo iguais... Ta pensando que é melhor que eu? – Enquanto colocava sua roupa, desfilou uma série de palavrões dos mais variados, com tal raiva que os perdigotos saiam como chuva. Nada parecia ofendê-la.
Aquilo o deixava doido, vontade de pegar a sua vassoura e...
- Que porra é essa Elias?! – O vigia entrou e sua postura voltou a de sempre. Cabisbaixo, sem encarar, pacato. Agarrou a vassoura que já segurava e colocou a sua frente como se pudesse se esconder por de trás dela.
- Nada não, nada demais... – Disse ele ainda arrumando a roupa.
- Você tava gritando feito louco... Já terminou?!
Ele balançou a cabeça afirmativamente. O vigia se aproximou dela examinando seu rosto. Ele cruzou o braço sobre o peito e enterrou a cabeça no próprio tronco, procurando no chão com o olhar um espaço entre seus próprios pés. O vigia arregalou os olhos.
- Caralho! Tu bateu nela?!
- Esbarrei... A pele tá sensível, eu acho... Vão pensar que foi do acidente...
- Já te pedi pra não bater nas peças... Se tu não se controlar isso ainda vai dar merda. Cadê meu dinheiro? – Fez um sinal de grana com os dedos e esticou a mão espalmada na direção dele. Ele tirou umas notas amassadas do bolso e entregou ao vigia.
- Me ajuda a arrumar o lençol... O legista chega as duas e a peça tem que estar arrumadinha!
Ele olhou o grande relógio da parede. Faltavam 15 minutos. Fizeram as coisas sem pressa. Cobriram o corpo, empurraram a maca até próximo as gavetas da geladeira e removeram-na para dentro de uma delas cuidadosamente. Ele fechou a gaveta lentamente como se despedisse. O vigia notou então que ele chorava contido.
Um choro cheio de soluços, catarro, dor, falando palavras baixinho pra ele mesmo como numa reza contrita. Vez por outra limpava o nariz com a blusa.
Toda vez ele tinha que consolá-lo.
- Relaxa cara. Em breve a gente vai ter carne nova no pedaço... – Falou enquanto dava-lhe tapinhas nas costas.
Aquilo sempre o confortava. No final, sempre tem.


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O Engolidor de Palavras!



A primeira vez que ele ouviu pensou que fosse apenas um pensamento perdido em sua cabeça. Daqueles que dão voltas e ficam batendo de um lado para outro, insistentes, girando dentro do coco. Mas a frase se repetiu algumas vezes e depois foi caindo, como se do topo de sua cabeça descesse, ali pela região da nuca, escorregando pela a garganta e chegassem apenas algumas sílabas ao estômago.
Ele estranhou. Logo ele tão prolixo e articulado, não era de engolir as coisas assim.
Tentou pensar em algo genial. E de novo repetiu-se a sensação.
Quem sabe algo mais simples e... Outra vez.
Era isso. Não conseguia mais externar o que pensava e tudo o que dizia virava um eco interno, indo goela a baixo direto para a pança.
“Como vou fazer pra comprar pão?” – Pensou.
E ouviu. “pra comprar pão...” “comprar pão...” “pão”... “ão”
Sentiu-se engolir as palavras, que desceram pescoço adentro com um sabor e cheiro de padaria às 6 da manhã. O lado bom foi que sentiu-se estranhamente alimentado.
E os textos seguiram-se, parágrafos inteiros. Pensamentos perfeitos, que agora eram ensimesmados, degludidos com o apetite dos que trocam suas vidas pela vida dos outros nas bibliotecas.
A barriga ficava assim, estufada, como um garoto subnutrido, o umbigo estufado e se sentia empanzinado de verbetes. E acabava arrotando sílabas, fonemas, nada completo saía boca a fora. E após muito insistir, viu que não tinha mais coragem, nem disposição.
Acabou passando os dias a abocanhar palavras. Nem mastigava. Algumas delas eram comuns, vulgares, usuais, desciam como pudim. Outras, antes de engolir, tinha que consultar um dicionário para ver senão fariam mal.
Mas tinham certas coisas que ele engolia que ficavam ali, dias, sempre difíceis de digerir. Suava frio na hora de colocar para fora. Já passou por isso?
Foi quando ouviu o carro de som anunciando o Circo.
Ah! Podia entrar para o circo. Fariam filas para ver a nova atração, seria famoso, engoliria palavras e seu próprio eco em cadeia nacional.
Podia inclusive ampliar seu número, engolindo em várias línguas. Seus olhos brilharam com a possibilidade. Só não gritou de felicidade porque mal pensou, e a alegria toda já estava chegando ao estômago.
Procurou o Dono do Circo que ficou impressionado com sua habilidade.
Um número assim seria atração principal. Muito melhor que a mulher com poder de síntese!
O dinheiro que ele ofereceu era um desaforo. Mas, como de costume, apressou a engolir o que pensava sobre aquilo e como sempre, assim como quase todo mundo, aceitou de bom grado.
E cartazes foram espalhados pela capital. Foi anunciado em toda parte...
A arena estava cheia.
Naquela noite, estranhamente, a audiência não torceu para os leões devorarem o domador, nem tão pouco para o erro do malabarista.
A promessa das palavras que não saem, sempre trazem uma certa tensão no ar.
- E com vocês o espetacular, magnânimo, sublime... Engolidor de Palavras! - Disse o mestre de cerimônias balançando sua cartola freneticamente.
Foi quando ele anúncio surgiu no palco. Roupa brilhosa, um ar confiante. Refletia.
A audiência em polvorosa aplaudia de pé.
E ele, emocionado com o reconhecimento tardio a seu talento ficou completamente sem... palavras.
Até que tentou pensar em algo, algo realmente inovador e diferente. Nada. Nem uma letra. Um vazio da cabeça aos pés. Seu coração parecia que ia saltar pela boca, como num desenho animado e sair dançando de cartola e bengala nas mãos.
Mas não era isso que haviam pago pra ver.
Na verdade a maioria eram intelectuais, cientistas, pensadores. Uma platéia que sempre adora um espetáculo em que não tenha que mexer nos bolsos.
A vaia começou mansa e foi ganhando o mundo. A turba enfurecida queria pão, circo, e para dar um tempero, sangue! Choveram tomates, pedras e o que mais doía, as verdades cortantes atiradas de todos os lados. Ele engolia as ofensas uma a uma e logo viu que se não saísse dali explodiria. Ou pior: começaria a gostar daquilo, talvez até virasse atendente de telemarketing.
Todos avançaram sobre ele. Assim é a fama. Todos querem um pedacinho de você, nada demais. Um naco, uma fatia, uma lasca. Algo para levar pra casa e deixar sobre o criado mudo.
Fugiu. A fama ali, e ele fugiu. Veja só.
Corria, como aquelas fugas em cinema mudo. E passou horas, dias, meses, correndo. E, até mesmo para ficar mais leve, resolveu não pensar em mais nada.
Levou sua vida assim, de forma simples, correndo das coisas.
E com aquele medo. De morrer sufocado em suas próprias palavras.

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O Homem que Não Queria Ir a Copa do Mundo.

Entrevista coletiva, aquele clima, microfones, burburinho e o técnico entra em cena. Senhor supremo do destino de milhões de brasileiros, traz a esperada lista em mãos.
Flashes disparam numa tagarelice de luz, metralhando de todos os lados.
Ele já entra olhando para baixo com aquele mau-humor de quem de fato será esquecido com o tempo, é coadjuvante, menos que o craque e, sinceramente, está mais ali para atrapalhar do que ajudar. Praticamente para torcer de um ponto privilegiado.
Sabe que aqueles 23 que convocou não vão agradar a todos. Nem em casa agradou.
- Você vai levar este sujeito em vez daquele outro? Tu não entende de futebol mesmo hein? Se não trouxer esta a Copa, nem volta pra casa! – Foi assim que sua mulher o acordou pela manhã.
Equilibra em suas costas este peso, que só a vaidade deixa mais leve. Senta a frente dos microfones e vai dizendo a lista em tom monocórdio, como se fosse um último pedido.
Tudo dentro do previsto, um pequeno frenesi, o grupo já fechado há tempos até que chega o último nome...
- E o Pompeu.
Silêncio no local. Ele levanta, sorri e se retira.
O que começou com um cochicho vira um burburinho e em pouco tempo uma algazarra.
Afinal: quem era Pompeu?
Todos os sites, colunistas, especialistas e Marias Chuteiras se perguntavam o mesmo.
Quando o telão mostrou a foto de Pompeu, em seus 50 anos, ele em casa foi acordado pelo telefonema.
- Pai, o que o senhor esta fazendo na seleção? – Dizia o filho mais velho gritando do outro lado do aparelho. – Liga a TV!
Pompeu acordou e meio sonado, ligou o televisor , quase zero, comprado em prestações até a outra Copa.
A mulher entrou na sala vinda da casa da vizinha. Coração na boca.
- Pompeu de Deus, que negócio é esse?
- Ah, só pode ser pegadinha. Coisa do Tavares. – Vaticinou Pompeu.
Não, não era. Tavares também foi pego de surpresa, lá no Méier, e ficou puto de nunca ter pensado em tal sacanagem.
Logo a imprensa especializada cercava a casa de Pompeu. Um dois quartos quase que todo pago, coisa de mais dez anos e tudo se resolvia, virava ponto de agito do bairro.
O telefone não parava. Pompeu tentava explicar, justificar, apontar caminhos.
Mas simplesmente não sabia.
O técnico justificou a escolha como tática e ponto. Precisava do Pompeu.
Pedido de entrevistas, coletivas e até um convite para um ensaio sensual. Não, aquilo não era sério.
Pompeu decidiu apenas ignorar tudo e todos e levar sua vida como se nada daquilo tivesse acontecido.
Ilusão que não durou a sua primeira ida a padaria.
Um link ao vivo entrou no principal jornal da maior emissora de TV, com direito a narração:
- Vai Pompeu, entra livre pela esquerda, passa por um, passa por dois e pede três pãezinhos...
Um repórter surge na frente de Pompeu, luz e câmera.
- Pompeu, diz pra gente como é a emoção de comprar este pãozinho?
Pompeu saiu correndo para casa, driblando fãs, jornalistas e até empresários ávidos por seu talento.
Em outro canal especializado o mediador do debate esportivo pedia a opinião do craque de outrora.
- Pompeu está em forma, não é mesmo?
- Comprar pão, receber troco e se lançar para casa é coisa de quem conhece. E viu o pique que ele deu fugindo dos repórteres? Aquilo é coisa de ponta esquerda, dos que vão a linha de fundo para cruzar... – Completou o ex-ídolo. Outro comentarista, sem a menor intimidade com a pelota mas grande teórico – existem muitos – começou uma crônica de improviso.
- Qual Epaminondas, grande half-center de 1953, Pompeu traçou uma trajetória mágica pelo estabelecimento, e este pão, besuntado da manteiga dos craques, entrará para história como um momento mágico para os panteões do esporte bretão. – Teve gente no estúdio que chorou.
Pompeu entra em casa e bate a porta empurrando o povo que se aglomera para fora. A mulher da cozinha grita.
- O moço da Inter de Milão ligou de novo e dobrou a proposta. Deixou o número e disse que pode ligar a cobrar!
Pompeuzinho, o filho mais novo, entrou pela porta da frente, abraçado a ele, a nora assustada e arrastado pela mão, o neto chorando.
- Pelo amor de Deus pai, nossa vida virou um inferno! Tão maltratando seu neto na escola!
- Tão chamando o senhor de traidor da patriáááááá – o final da frase do menino emendou com o choro.
Aquilo tinha que cessar. Pompeu caminha até a porta e abre num gesto corajoso.
- Tá bom, tá bom, diz lá que eu vou pra tal de Copa do Mundo!
O povo vibrou. Pompeu saiu carregado pela multidão. Como todo craque deveria ser.
Uma semana depois já estava com o grupo.
Por ser mais velho, logo assumiu a liderança da equipe. Muitos buscavam nele um conselho, um toque, uma palavra amiga.
Pompeu com seu jeito paternal explicava as coisas da vida.
Num piscar de olhos a Copa começou. Pompeu ganhou sua posição nos treinos. Dava mais toque ao time e formou com mais três boleiros o que foi chamado de losângulo fascinante.
Na primeira fase foram goleadas que entrariam pra história das Copa. Na segunda, um jogo duro contra a Holanda e nada mais. Passar pela Argentina foi fácil. Pompeu fez dois. Maradona reconheceu que talvez Pompeu fosse seu sucessor. Os dois acima de Pelé é claro.
Na final Pompeu era dúvida. Os joelhos, sempre eles, não ajudavam.
Não dava pra jogar os noventa minutos.
Jogo complicado, o narrador perguntava se Pompeu não havia amarelado.
Perdendo por um gol a seleção foi para o intervalo. O técnico se aproximou de Pompeu:
- Sabe porque o convoquei?
O técnico murmurou algo no ouvido de Pompeu que sorriu.
Na volta ao campo Pompeu estava lá. Logo no início Pompeu lançou o centro-avante que fez o primeiro.
Com uma bela cobrança de falta Pompeu virou o jogo e aos quarenta e três minutos fechou o caixão com um belo sem pulo do meio da rua.
Foram semanas de festas. Pompeu sumiu da família por quase uma semana.
Entrevistas, fotos, encontro com presidente, festas de jogadores e Marias Chuteiras até que Pompeu cansou.
Chegou em casa lá pras tantas da madrugada e a esposa avisou em meio ao sono.
- Tem bolo de carne na geladeira.
- Tô sem fome.
Pompeu sentou em frente a TV e ali ficou vendo resenhas e reprises durante dias.
O que o treinador falou para ele antes da decisão ninguém nunca soube.
Com o caneco na mão e um sorriso bobo no rosto, Pompeu, esperava resignado talvez acordar a qualquer minuto.

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Céu de Cereal


Antes da pelada sempre jogamos conversa fora.

Coisa normal de homens prestes a travar embate campal, fazer gols, delirar e ter seus momentos de glória.

Falávamos vagamente sobre viagens, vôos e afins. Eis que alguém levanta a dúvida:

- Não entendo esta coisa do Comandante avisar que saiu mais tarde, mas para compensar, vai aumentar a velocidade do avião para chegar no horário... Porque já não se vai nesta velocidade e apenas se chega mais rápido.

Após risadas de todos, alguém lúcido, e mais bem informado que a maioria, explicou que existe um certo cálculo entre aceleração x combustível que pode deixar a viagem mais cara ou mais barata de acordo com a velocidade e a distância percorrida.

Na mesma hora viajei.

Em tempos de caos aéreo, imaginemos que isso vire regra num futuro próximo.

Você está num vôo que já saiu bem atrasado e o comandante, entre todas aquelas informações pavorosas, tipo 10 graus abaixo de zero é a temperatura exterior, altitude de “muitos” mil pés, diz com aquela voz marrenta de quem está fazendo algo simples:

(Comandante)

- Boa tarde senhores passageiros, aqui é o Comandante Otacílio e quero me desculpar em nome da SkyWay, a Linha aérea da nossa terra, pelo nosso atraso em solo. Para ganhar tempo vamos aumentar nossa velocidade em vôo em 20%. Desta forma chegaremos em nosso destino no horário marcado...

Após relaxar na poltrona, você pensa que aquela tonelada de aço só cai no vôo dos outros. Então a aeromoça surge em sua frente com aquele olhar de pingüim de geladeira.

(Aeromoça)

- Boa tarde passageiro, seja bem vindo ao vôo 472, da SkyWay, a Linha aérea da nossa terra.

(Você)

- Boa tarde...

Ela sorri impassível e continua seu speech como se nada tivesse ouvido.

(Aeromoça)

- Conforme a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2013, pela alteração na velocidade as companhias aéreas podem cobrar a diferença das passagens in loco.

A Aeromoça começa a digitar num pequeno Palm Top.

(Aeromoça)

- O seu bilhete, assento 3B, é de categoria executiva plus e pelos meus cálculos... Temos uma diferença de 47 Reais e 22 centavos... Correspondente a 20% no aumento da velocidade da aeronave...

(Você)

- ... Como?

A Aeromoça abre um sorriso de “nossa, outro burro” e o atira em sua direção.

(Aeromoça)

- Conforme a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2012...

(Você)

- Que porra de lei é essa?

(Aeromoça)

- É a a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2012, que pela alteração na velocidade as companhias aéreas podem cobrar a diferença...

- Que louco...

- Não! In loco. Quer dizer, no local.

Outro olhar de “Burro” lançado em sua direção. Você fica puto.

(Você)

- Sim minha filha, eu entendi, eu sei o que é “in loco”. Só acho uma absurdo! E meus direitos?!

(Aeromoça)

- Ah, o senhor tem o direito de pagar em cartão, crédito ou débito, ou em cash.

(Você)

- Quer dizer que vocês atrasam e eu que pago o pato.

(Aeromoça)

- Não senhor. Patos não são aceitos.

Você olha para Aeromoça descrente que ela tenha feito uma piada. Saca seu cartão e paga prontamente. A moça se afasta e você volta a pensar na vida. Minutos depois o comandante volta à carga.

(Comandante)

- Boa tarde senhores passageiros, mais uma vez quem fala é o Comandante Otacílio da SkyWay, a Linha aérea da nossa terra. Devido aos ventos sul sudeste de latitude 32º com 79 graus de inclinação, informamos que nossa aceleração descerá em 12%, mesmo assim chegaremos em nosso horário normal.

Qual aparição a Aeromoça está a sua frente mais uma vez.

(Aeromoça)

- Boa tarde passageiro, seja bem vindo ao vôo 472, da SkyWay, a Linha aérea da nossa terra.

(Você)

- O que foi agora?

(Aeromoça)

- Conforme a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2013, pela alteração na velocidade da nossa aeronave...

(Você)

- Ah minha filha, não me diga que vou ter que pagar mais alguma coisa?

(Aeromoça)

- Não, olha que coisa boa... Temos que restituir o valor pago ao senhor.

(Você)

- Ah agora sim... Finalmente algo que funciona neste país!

(Aeromoça)

- E o senhor ainda pode escolher o sabor!

A Aeromoça estende em sua direção uma caixa repleta de barrinha de cereal.

(Você)

- O que é isso?

(Aeromoça)

- Barrinhas de Cereal, saborosas e nutritivas! Temos chocolate com coco, amêndoas...

(Você)

- Que são barrinhas eu to vendo, mas o que significa isso?

(Aeromoça)

- Conforme a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2013, o seu troco pode ser dado em produtos da empresa... Ou seja, barrinhas. Prosseguindo, temos maça com mel, crocante...

(Você)

- Eu não posso ficar preso a isso!

(Aeromoça)

- Ah, as barrinhas tem muita fibras, preso o senhor não vai ficar!

(Você)

- Isso é um absurdo... Vou ao Procon! A ANAC! A policia Federal! Não sou banana!

(Aeromoça)

- Perfeito... Pelos meus cálculos o senhor tem direito a 4 barrinhas. Aqui estão... De banana, não é?

Você fica sem ação segurando as barrinhas tal qual um garoto com as mãos queimando pela vela durante sua primeira comunhão. A Aeromoça segue para outra poltrona distribuindo as barrinhas. Você fecha os olhos como se buscasse refúgio do ódio imenso dentro de seus pensamentos. Esta quase relaxado quando o comandante volta.

(Comandante)

- Boa tarde senhores passageiros, mais uma vez quem fala é o Comandante Otacílio da SkyWay, a Linha aérea da nossa terra. Perdemos a força dos ventos sul sudeste de latitude 32º com 79 graus de inclinação. Ao mesmo tempo, uma inversão térmica faz com que nossa aeronave tenha que elevar sua velocidade em quase 15%. Mas chegaremos pontualmente ao nosso destino.

Você abre os olhos e quem está a sua frente sorrindo enquanto digita no palm top?

(Aeromoça)

- Conforme a lei 20.540, de 17 de dezembro de 2013, pela alteração na velocidade as companhias aéreas podem cobrar a diferença das passagens in loco. São 27 Reais...

Sua vingança está ali, doce, pronta em suas mãos. Você dá um sorriso maléfico e estende as barrinhas na direção da Aeromoça replicante. Ela devolve o sorriso no mesmo nível.

(Aeromoça)

- Infelizmente senhor não aceitamos barrinhas, apenas dinheiro ou cartão. São mais 27 reais, o senhor vai pagar como?

O Avião não chega a seu destino.

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O BURACO

O suor fazia trilhas por entre suas banhas.

Havia um bom tempo que o vento havia desistido de passar por aquela avenida. Já o sol, não. O sol estava ali, firme, forte, marretando sua cabeça assim como ele marretava o asfalto.

Cada vez que batia no chão, sentia seu corpo todo tremer, vibrar penetrando o betume virgem. A marreta tal como um objeto fálico socava com força o asfalto e ele gozava com aquilo.

Tirou o capacete por um minuto e observou o engarrafamento. Sorriu com orgulho e lembro do diálogo com a patroa pela manhã.

- Hoje vou parar uma avenida! – Contou orgulhoso para a mulher enquanto comia o pão frito na frigideira encharcada de margarina.

E parou mesmo.

Podia ver no rosto o desespero dos executivos dentro de seus carros de luxo. Não contavam com aquela obra ali, aquele mundo de carros, aquele engarrafamento, os minutos de atraso.

Via com satisfação o rosto trincado dos motoristas de ônibus, que como cágados carregavam os estresses de todos que iam com ele nos coletivos lotados.

E os guardinhas? Estes eram uma diversão à parte para ele. Soprando os apitos, fazendo sinais, numa dança desesperada e involuntária. Notava que vez por outra eles sumiam. Era muita pressão. Muita mesmo. Mas não pra ele.

- Se o cara me pôs neste buraco, trago todo mundo junto comigo...

Passou a mão na testa e tirou quase litro de suor, que escorreu pelos seus braços empapando ainda mais o macacão. Adorava aquilo.

O tampão de ouvidos o deixava ainda mais distante, isolado, inalcançável. Um Deus a cuidar dos destinos de todos, decidir o quanto tempo aquele buraco iria reger a vida de toda aquela gente.

- Pra onde este povo todo vai? – Perguntou-se.

Aquilo o revigorou mais uma vez. Deixou seus músculos rijos, trouxe mais vontade, desejo, tesão. E a marreta voltou a subir e descer. Logo o buraco foi ficando fundo, fundo, fundo...

- Todo mundo cava... Todo mundo...

Era um dos momentos em que de grão virava assunto da multidão.

Da janela do ônibus gritaram:

- Procurando petróleo negão? –

- E pelo visto já achou... Tá todo sujo. – Todos riram. Ele não, nem ouviu.

Continuou cavando, cavando, cavando... Nem sentiu os segundos, minutos, horas passarem.

- Para que este povo todo vai? – Perguntou-se.

Era bom deixar para trás tudo e criar aquele casulo de terra e pó, onde só existia ele e nada mais. Sem mulher, filhos, patrão, trabalho, ponto, trânsito, buzinas, fumaça, só ele e as pancadas. Como batidas de seu coração acelerado.

- Mathias! Sobe homem, que história é essa?! – Gritou o mestre de obras na ponta do buraco, que já ia fundo. Passando dos dutos e da necessidade. Mas ele não parava.

- Qual a razão disso tudo? – murmurou entre os dentes e as batidas.

E na busca de alguma razão, ele continuou batendo, marretando, abrindo passagem. Cavando a própria queda. Como não fosse mais um buraco, mas um novo caminho...

- Mathias! – Não ouviu, já ia muito longe, muito fundo. Era somente eco e sombra.

Dizem que após cavar alguns dias e algumas noites ele realmente encontrou o que procurava.

Um significado para tudo aquilo. Mas o buraco era tão fundo, mas tão fundo que por mais que ele olhasse pra cima, não via mais uma luz no fim do túnel.

E o que parecia uma saída, virou cova.

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