As Sereias da Estante
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”.
Pensou, que este seria um ótimo começo para um romance. Uma sentença simples, direta e significativa. Um verdadeiro epitáfio para qualquer ambição humana de se marcar para posteridade.
Estava em meio à leitura de um livro que já havia começado um par de vezes. Prometeu a si mesmo nada mais de digressões e virou outra página.
As palavras não convenciam sua compreensão.
Acabou ficando ali parado. Indo e voltando na mesma frase do escritor fabuloso. Não estava mais atento o suficiente. E era um destes romances que mais que lidos, devem ser decifrados. Broxara.
Ficou com vontade de dizer ao livro:
- Desculpe, mas isso nunca aconteceu comigo antes...
Riu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
A frase se repetiu em sua cabeça como um pretexto para que largasse a leitura. Uma voz de sereia fazendo com que emergisse em pensamentos mais distantes. Naufragava ao sabor das palavras e se deixava levar. Já que estava ali, nas profundezas, resolveu explorar.
Vasculhou na sua memória o primeiro livro que havia lido. Nada.
Olhou sua estante. Um orgulho. Títulos e mais títulos. Tentou fazer um resumo mental de cada um dos exemplares. A cada três, um simplesmente era novamente inédito. Mesmo folheando algumas páginas se perguntava quem eram aquelas pessoas, lugares e códigos.
Entristeceu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
Lembrou que na biblioteca de Moscou, eram mais de um milhão de exemplares. Nas suas contas mentais, mesmo devorando um livro por semana, durante 20 anos não chegaria a 4.000. Com esforço a 6.000. Pouco, nada, era um insignificante.
Enfureceu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
Foi indo e vindo. Do escritório para o jardim da casa. Vai e volta e logo as estantes estavam vazias. Todos os livros formavam uma pilha generosa sobre o gramado. Ao lado deles em outro monte, madeiras, estopa e jornais. Fósforo, brasa, chamas, labaredas.
Sem nenhum ritual mais elaborado começou a queimar um a um, cada exemplar. Folheava as três primeiras páginas, olhava a sua capa e atirava na fogueira. No começo com alguma mágoa, depois com um certo sabor de vingança.
A única coisa que realmente lamentava é que aquela frase, a que havia achado tão boa, fugira completamente da sua memória.
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