A Lápide
Vale a pena ver de novo :)
Elias surgia na sala um pouco depois do jantar. Marlene assistia TV. Aquela hora sagrada que você pode ouvir da janela as televisões funcionando como coral.
- Marlene, veja se está bem assim...
- Humhum...
- Tá prestando atenção Marlene?
- Humhum...
- Aqui jaz um homem que teve sonhos e em sua vida fez de tudo para realizá-los. – Falou em tom solene. Ficou por uns segundos aguardando resposta. Como nada veio.
- E então?
- Como?
- Eu bem que perguntei se você estava prestando atenção. Vou repetir...
- Não... Não precisa. Eu entendi. Queria ver se era isso mesmo... Elias, posso voltar para minha novela? - O detalhes que em momento nenhum ela se afastou do folhetim.
- Ah, sim. - Disse ele já maquinando outra frase. Sumiu para o quarto do casal. Da sala ela ouvia ele repetir em voz alta a frase algumas vezes em tons diferentes. Ela sabia que aquele diálogo não havia terminado ali. Não mesmo. Elias não largava as idéias de forma fácil.
Até hoje tinham um aparelho de fazer abdominais por conta disso. As facas Ginsu, o medidor de pressão, o Abflex. E o terreno em Inhoaíba, hoje tomado por posseiros.
- Isso aqui vai crescer e faremos fortuna. – Disse Elias a época. Inhoaíba praticamente Búzios, ele jurou.
Sempre tinha em mãos um negócio de ocasião... Mas logo hoje?
Era o último capítulo de Vidas em Chamas. Em breve perderia as melhores companhias dos últimos anos. Mais dois blocos e ela seria abandonada para sempre pelo mocinho, pela mocinha, pelo núcleo rico, a galera do bairro pobre, pela vilã...
- Sempre desconfiei dela. – Pensou. E todos iriam embora.
E as cenas do casamento no final? Bélíssimas! Ela já havia visto muitas das fotos nas revistas e nos jornais.
Como ela ia fazer a partir de segunda? Quem ela iria ter que encontrar e conviver.
- Novela sempre começa sem graça – Disse sua melhor amiga no salão.
Marlene já conhecia a rotina. Identificar suas novas companhias, de quem iria gostar, quem não iria com a cara, quando rir, quando chorar, quando se emocionar. Tudo mastigadinho, sem muito esforço. Ela sabia no fundo até que depois de um tempo esqueceria estes e sua vida se tornaria a vida daqueles outros.
Mas, fazer o que? Pra ela aquelas despedidas eram sempre muito difíceis. E o Elias, que ela via todo dia, o dia todo, ali incomodando. E ele voltou a carga.
- Olha só, mudei um pouco.
- Elias... Querido... Não pode esperar o intervalo?
- É rapidinho amor.
- O Inspetor Paulo já descobriu que a Fatinha Accioli é a assassina...
- Coisa rápida, um minuto...
- Estão em cima da ponte... Ela tá cercada...
- “Dorme aqui um homem que teve sonhos e em sua vida fez de tudo para realizá-los.” – Elias vaticinou com voz impostada.
- Ta ótimo. Só isso? Dá licença que você está na frente da TV...
Ele fechou a cara. Começou a gesticular e caminhar de um lado para o outro.
- Poxa Marlene, depois você reclama que faço as coisas sem você, que você não participa dos meus projetos, que por isso não dão certo... To aqui escrevendo o que pode ser minha lápide, o registro da minha existência na terra e você nem tchuns e... – E foi blá, blá, blá de encher a sala.
A vilã já havia despencado da ponte. Numa morte digna das vilãs. E merecida, isso sim. E ela não viu. Perdeu, numa das idas e vindas de Elias. 200 capítulos, todos assistidos, vividos, ridos, sofridos e lidos antes, através de resumos em revistas especializadas, esperados como uma missa, a morte, um filho, um casamento... E agora? Como se concentrar no casamento com aquela falação toda. Logo, logo os noivos iriam se despedir dela, numa alegre morte via satélite. E voltariam a ser de carne osso, na sua fria e imprevisível vida real. Celebridades fazendo pose para paparazzis.
Marlene repentinamente se sentiu possuída de uma raiva histérica, que foi crescendo, crescendo, até se tornar uma calma inabalável.
Sorriu para Elias e olhou dentro dos seus olhos de um jeito incomum.
Falou num tom frio, árido e desconhecido até então por ele.
- E por que não: aqui jaz Elias, o homem que fez a mulher perder o último capítulo da sua novela?
Elias sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
- E deste projeto querido, vou participar com prazer...
Elias instintivamente deu um passo e saiu da frente da TV. Marlene foi rapidamente capturada pelo brilho da telinha. Olhos mortos, hipnotizados pelo casório, voltou a ter seu rosto de sempre.
Ele entendeu o quanto a novela era importante para a vida da mulher. E não era ele, logo ele, que queria apressar as coisas.
#
10 comentários:
isso se chama alienação...
20 de agosto de 2009 às 13:22brigar com o próprio marido por causa de novela não dá né....
ameaçar então...rsrs
final engraçado...
abraços
http://surfinsantoss.blogspot.com/
Aloha
Vale a pena messmo :D
20 de agosto de 2009 às 13:31muito legal o tema.
voce escreve muito bem. adorei o conto. e sou contra novelas, então já viu... rs
20 de agosto de 2009 às 13:51Gostei do conto!
20 de agosto de 2009 às 14:23Retrata bem a questão da midiatização da vida privada.
Parabéns!
hahaha vingança normalmente os homens fazem isso com o futebol
20 de agosto de 2009 às 14:26Muito bom!
20 de agosto de 2009 às 15:02Real e triste...
Conheço pessoas que só tem novela e futebol como diversão, e nem consigo mais ficar com raiva delas...
sem problemas cara... tambem concordo que JESSICA ALBA nao seja uma boa atriz e concordo com sua opiniao de que REBOBINE, POR FAVOR é genial... pena que os 'genios' que escolhem que filme passará nos cinemas nacionais deixaram esta pérola a ver navios...
20 de agosto de 2009 às 15:03vlw pela visita
Já eu não passo tantp tempo na tv, ô mulher d epaciencia.
20 de agosto de 2009 às 15:35www.blogdorubinho.com.br
"...deste projeto querido,vou participar com prazer..."
22 de agosto de 2009 às 16:24Eram 200 capitulos assistidos, perder logo o último?! Não dá!
Manda bala Fernando...
Enquanto pessoas perguntam por que, outras pessoas perguntam por que não?
Até porque não acredito no que é dito, no que é visto.
Acesso é poder e o poder é a informação. Qualquer palavra satisfaz. A garota, o rapaz e a paz quem traz, tanto faz. O valor é temporário, o amor imaginário e a festa é um perjúrio. Um minuto de silêncio é um minuto reservado de murmúrio, de anestesia. O sistema é nervoso e te acalma com a programação do dia, com a narrativa. A vida ingrata de quem acha que é notícia, de quem acha que é momento, na tua tela querem ensinar a fazer comida uma nação que não tem ovo na panela que não tem gesto, quem tem medo assimila toda forma de expressão como protesto. O Teatro Mágico
Triste sina de alguns casamentos...vivem a vida dos outros pela TV.
26 de agosto de 2009 às 13:30Isto não se chama alienção, se chama rotina, desamor, falta de prestar atenção no outro.
Saudade dos debates Marton. Muita.
Estou com vontade de me inscrever no curso de roteiristas e seleção do Walter Moreira Salles e levar um conto meu. O que acha?
Postar um comentário