segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A Fábula do Pé Sujo.


Este conto foi escrito em Dezembro de 1999, para meu amigo Ricardo Siciliano como um presente para sua filhinha Carol. Como sou pscicótico, fiz uns ajustes finos e aí está. :)


Madrugada de Natal, entre 03:15 e 05:17 da manhã. As ruas desertas e ninguém, além deste que escreve e aquela figura, sentados num bar fedorento da Rua Prado Júnior. Ninguém mais acreditaria. Nem eu mesmo acreditaria em mim.
Uma garoa fina pairava no ar deixando no chão aquelas poças e o aspecto reluzente de algo que acabou de ser limpo. Mas para limpar aquele ambiente, teria que ser muito mais que água benta.
Putas, gigolôs, pequenos meliantes, bêbados, iam e vinham sem parecer notar aquele coelho sentado a minha frente. Ou não acreditavam em seus olhos ou não queriam mais acreditar em coelhinhos... Ele cantarolava baixinho “coelhinho se eu fosse como tú...” Sorriu. Depois o orelhudo sorveu o seu copo de chope de uma golada só.
(Eu)
- Vai com calma cara...
Tinha encontrado com o Coelhinho da Páscoa numa das boates de strip da própria Prado Júnior. O que eu fazia lá em plena noite de Natal não vem ao caso. Mas o fato era que alguns seguranças queriam enchê-lo de porrada por causa de uma conta que ele se recusava a pagar. Tentei interferir. Apanhamos os dois. Ainda me doía a nuca e um lado das costas. Os três chopes fizeram a dor ir embora rapidamente.
(Coelhinho)
- Calma é o caralho!
(Eu)
- Sem Stress...
(Coelhinho)
- Tá pensando que é fácil? Tens filhos? Uma trepadinha só e vem eles aos montes! Um saco...
(Eu)
- Ei, o que que há velhinho? – Falei imitando um coelho famoso.
(Coelhinho)
– E não vem me falar neste outro “filhodasputa” que faz sucesso e depois esquece da família. Ta lá nos States, com a bunda cheia de... Carrots!
Ele se aproxima de mim e abaixa aquela longa orelha encardida como se tentasse não ser ouvido pelas outras mesas.
(Coelhinho)
– Minha ex mulher me deixou por causa dele... Um dia peguei os dois na cama. Depois ela veio me dizer “agora sei porque chamam seu primo de Pernalonga...” Mulher é tudo galinha! Cachorra! Vaca!
(Eu)
- Coelha!
Um vulto rotundo se aproxima da mesa. Sua roupa vermelha tem rasgos e esta suja de fuligem. A barba, outrora branca, agora está cinza e macilenta. Ele bate na própria roupa, o pó sobe. O bom velhinho puxa uma cadeira e se joga pesadamente sobre ela. Faz sinal para o garçom.
(Papai Noel)
– Um chope e um Dreyer...
(Coelhinho)
– Fala Santa!
(Papai Noel)
– Me respeita rapaz! Olha minhas barbas brancas!
(Eu)
– Cinzas...
(Coelhinho)
– Porra, Santa Klaus é teu nome!
(Papai Noel)
– Desculpa! É que depois de aturar tantas crianças malas, fico até sem rumo.
(Eu)
- Crianças malas? Vocês dois são inacreditáveis...
(Coelhinho)
– Todo mundo diz isso...
(Eu)
– Não é isso! Vocês estão muito... Muito... Amargurados. Calma lá, vocês são ícones... – Disse com a voz pastosa. Papai Noel me olhou atravessado.
(Papai Noel)
– Meu filho – Coloca a mão gorda sobre mim – És fresco?
O Coelhinho solta uma gargalhada segurando o saco. Na verdade um saquinho. Ele engasga. Seus olhos vermelhos ficam injetados por um momento. Fica sem ar e seu pelo branco começa a ficar vermelho. O bom velhinho dá-lhe um tapa nas costas. Um naco de cenoura aperitivo voa e cai melado sobre o meu colo.
(Eu)
– Eca...
(Coelhinho)
– Foi mal aê... – diz sorrindo meio sem graça.
Papai Noel me encara de novo.
(Papai Noel)
– Vai vir com aquele papo de “espírito de natal”, “nascimento do menino jesus”, “paz na terra”... O caralho! Tudo é grana!
O garçom serve o Dreyer e ele toma de um gole só. Um fio marrom da bebida escorre pela sua barba. Ele limpa a boca com as costas da mão. O bom velhinho aperta os olhos e me encara com um olhar maroto. Vê claramente que não estou convencido. Ele se aproxima de mim, rosto bem próximo, sinto o cheiro de fuligem, roupa velha, suor e Dreyer, tudo junto.
(Papai Noel)
– Ou o que você acha que a criançada falaria de mim se eu não entregasse um presente este Natal? Filho da Puta seria pouco!
O coelho concordava com a cabeça.
(Eu)
– Então qual a recompensa final? O que vocês ganham com tudo isso?
(Coelhinho)
– Você não gostaria de saber.
(Eu)
– Diz... Pode dizer.
(Coelhinho)
– Você não agüentaria a verdade... – Disse ele imitando Jack Nicholson.
Minha vontade foi dar um tapão no pé da orelha do roedor. As chances de errar eram mínimas. Mantive o fair play.
(Eu)
– Diz logo cacete!
Papai Noel ficou de pé. Segurou sua blusa com as duas mãos e como um tarado exibicionista abriu suas vestes, mostrando a tatuagem enrugada entre as banhas brancas. E eu vi. Tudo tinha ficado claro. Isso explicava tanta coisa. Papai Noel balbuciou.
(Papai Noel)
– Merchadising...
Lá estava ele. O símbolo da Nike. Distorcido pelas banhas do velhinho bebum.
(Papai Noel)
– Muito antes do Ronaldinho eles me procuraram. E não é só... Mostra a ele.
O Coelhinho ficou meio constrangido e se pôs de pé também. Ele virou de costas pra mim abanando o rabinho em forma de pompom.
(Eu)
– Qualé mermão... Acho que ainda não bebi bastante para tal aventura...
(Coelhinho)
– Calma rapaz... Relaxa e olha firme... Que só vou mostrar uma vez.
E levantando o pompom, eu vi outra vez. Ali perto da cloaca um “m”. O McDonald’s havia passado por ali.
(Eu)
– Jesus!
(Coelhinho)
– Ele tem contrato com a Microsoft...
(Papai Noel)
– Está é a verdade meu filho. – Disse colocando as mãos nos meus ombros. Tomei o Chope num gole só. Tudo rodava ao meu redor. O coelhinho e o velhinho voltaram a se sentar. Papai Noel fechava seu roupão e o Coelhinho me olhava sacana.
(Coelhinho)
– Acho que você esta precisando de algo forte. Ô amigão! - O coelhinho acenou para o garçom. – Traz um doze anos!
A primeira garrafa sumiu tão rápido quanto a segunda. De futebol, falamos de mulher e na terceira rodada resolvíamos os problemas do mundo. Eles riam das minhas tiradas e davam tapinhas nas minhas costas repetindo: Cara, você não existe! Logo eu? Logo quem diz isso?
Acordei com a água suja que lavava o chão do bar lambendo os meus pés. O sol de Copacabana espantava as putas, os gigolôs, os mendigos e vampiros. Olhei em volta e meus companheiros de noitada haviam sumido na madrugada do Rio. Teria sido um delírio, uma alucinação, um delirium tremis?
Não. Havia uma prova irrefutável. As duas lendas haviam deixado para traz uma senhora conta. Uma fábula!

1 comentários:

Rodolpho Pajuaba disse...

É, velho, você está aprendendo. "Uma fábula" foi muito boa, parabéns!

20 de outubro de 2008 às 18:13

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